quarta-feira, 7 de maio de 2008

Wit, Emma Thompson e a reflexão sobre a morte






Estou colocando aqui um texto que escrevi em 2006 para o II Ciclo de Cinema e Filosofia, realizado pelo Curso de Filosofia da UNISC. Na época, o Prof. Marco Antônio Azevedo esteve em Santa Cruz, deu uma bela palestra sobre Bioética e ainda apresentou o melhor comentário que já assisti sobre Mar Adentro, do diretor Alejandro Amenabar. A postagem do texto foi motivada por uma conversa paralela com meu amigo blogueiro Giovani, o pai do Rei da França, (veja no endereço http://inexistenciaintencional.blogspot.com/) e que agora anda encucado com a morte...essa...que veste capa preta e leva as pessoas embora. A melhor coisa do meu comentário é o poema do John Done.


Comentário sobre o Filme Uma Lição de Vida de Mike Nichols. Prof. Flavio Williges- Curso de Filosofia- UNISC. 25 de Maio de 2006.

O filme Uma Lição de Vida apresenta uma série de desafios ao espectador. Alguns desses desafios dizem respeito à questões mais práticas como, por exemplo, questões de ética médica e humanização das relações em ambientes profissionais (Universidade, Hospital, etc). Outros tem uma raiz mais profunda e tratam, especialmente, da capacidade humana de lidar com a própria finitude, com a dor, o sofrimento e a morte.
Começarei este comentário fazendo algumas observações sobre estes pontos mais gerais (que são temas de grande interesse filosófico) e avançarei para as questões mais específicas (ética das relações, especialmente no cuidado). .
Em primeiro lugar, é relevante notar que certos aspectos da linguagem fílmica são explorados pelo diretor para fazer o próprio espectador experimentar em si mesmo os dramas da vida da paciente. As tomadas em primeiro plano, onde a atriz (Emma Thompson) fala diretamente para a câmera remetem, invariavelmente, à idéia de que alguém está falando conosco e o efeito produzido é o reconhecimento de que quem está sofrendo e dá-se conta de sua própria mortalidade não é apenas a personagem, mas o próprio espectador. Assim, os temas abordados aparecem claramente como temas exemplares para nós, pois a impressão produzida é que o enredo, a história contada, não é de alguém distante; a história inteira ou a tragédia é uma tragédia humana, nossa também.
Em segundo lugar, o filme trata de dois personagens que possuem um “caráter” muito próximo, apesar de atuarem em áreas distintas (pesquisa médica e poesia). Os dois (o Médico Kelekian, depois substituído na trama pelo médico residente e a Profa. Vivian) representam, de certo modo, celebridades em suas áreas de trabalho. Essa notoriedade adveio especialmente do modo inflexível como ambos desenvolveram suas carreiras profissionais. São, nesse sentido, dois profissionais brilhantes e o filme sugere que isso se deve, em boa medida, à inflexibilidade, rigor e uma grande frieza no trabalho. Ambos operam no interior de um esquema produtivo e competente, com ênfase no estudo minucioso e rigoroso de seus diferentes objetos. O Dr. mantém essa postura firme até o final, a postura de alguém que vê na doença a oportunidade de novas descobertas e de fazer a ciência médica progredir. No caso da professora, o “espírito forte” oferece inicialmente a idéia de que a mesma inflexibilidade revelada noutros contextos da vida poderia ser transportada para o contexto do enfrentamento da doença e garantir, no final, a cura. A razão disso é que, mesmo na doença, a fortaleza nos permite assumir a posição de atores, de guiar, controlar e comandar, ao invés de ver as coisas se desenrolarem sem sermos capazes de fazer nada. No entanto, aos poucos vai sendo mostrado que, nas doenças incuráveis, como o câncer em estágio avançado, até o ser humano mais forte é jogado diante da necessidade da inclinação diante de uma realidade que é parte da vida, mas que a ultrapassa, que não podemos resolver, pois não há luta, nem caminho pelo qual avançar. É diante do reconhecimento dessa fatalidade que a inflexibilidade vai dando lugar ao medo, a necessidade do calor e contato humano. Nesse sentido, o filme revela duas diferentes representações do homem no mundo que são de grande interesse filosófico:
a) de um lado temos a indicação de uma representação onde a vida aparece como sendo aquilo que é revelado através das ciências naturais, onde o homem aparece como alguém que estabelece com o mundo relações de conhecimento, de cognição. Segundo tal visão, os humanos são parte da natureza e, assim, a idéia de examinar ou estudar e, especialmente, “tratar” um humano se aproxima da idéia de tratar um outro objeto ou coisa qualquer do mundo, como uma laranja com fungo ou um motor encrencado. No interior dessa visão aparece também o papel que a razão instrumental assume na questão da conduta da vida. Com o avanço da ciência, a idéia de uma razão baseada em cálculos de meios-fins, tornou-se largamente aceite. Através de um procedimento formalizado podemos analisar as coisas de modo a atingir nossos objetivos. Essa possibilidade de cálculo estratégico é muito aplicada até hoje inclusive em terapias de desenvolvimento pessoal e programas de auto-ajuda. Ela inclui especialmente imagens como da vida como um jogo de xadrez no qual nós temos diante de nós um tabuleiro e onde o movimento planejado das peças garantem o sucesso no jogo. Essa imagem não estava presente claramente em nenhum dos dois personagens centrais, mas ela é útil para entender uma visão redutiva da vida que era parte da imagem de ambos do mundo. Em cada um deles, parecia pesar a idéia do desenvolvimento de um projeto racional da vida, que envolvia o controle e a idéia de vencer os desafios (esse ponto aparece também na aposta do médico residente e da professora, quando jovem pesquisadora, de voltar para a biblioteca e estudar).

b) Há, no entanto, e essa ressalva deve ser muito bem apreciada, um tema moral no filme que, mesmo dentro da visão esboçada anteriormente, deve ser considerado. Nas concepções mais antigas da vida se fazia a distinção entre (1) mera vivência, a existência fundada na satisfação das necessidades práticas (casa, comida, etc.) e (2) uma mais elevada ou melhor forma de existência que podemos atingir se compreendermos o nosso objetivo correto na vida. A Profa Vivian (e todos os personagens do filme), desde os princípios de sua carreira, manifestam a preocupação pela pergunta acerca do tipo de características que uma vida boa deve ser capaz de incorporar. A maioria delas responde essa pergunta na direção da excelência nas suas diferentes áreas de trabalho. No entanto, é possível reconhecer que a personagem passa por uma transformação que significou colocar, dentro desse modelo de uma vida perfeita ou da melhor vida para o homem, os temas do amor, da presença, do afeto e da atenção. É irônico, nesse sentido, notar que o alvo dessa descoberta seja alguém que sempre esteve próxima da morte e da temática da perda, dos temas humanos, mas sempre procurou tratar desses temas como um cirurgião que disseca um cadáver. Assim, o descobrimento e a transformação vivida pela personagem acaba por oferecer uma imagem (contrariamente à imagem científica, instrumentalista da vida traçada acima) muito mais incorpada do humano, um sentido onde o homem não se reduz a uma rede de relações técnico-cognitivas e num espaço de manipulação de resultados. O que a transformação mostra é, nesse sentido, que o homem estabelece relações existenciais-afetivas e fruitivas com o mundo. Nós não apreendemos e experimentamos o mundo apenas como alguém que o conhece e calcula estrategicamente seus passos sobre ele. Nós também sofremos ou sentimos alegria com a vida e com o fato de termos ser, existência. Essa presença humorada no mundo mostra que ele não é, para nós, apenas o lugar onde estamos, um lugar que conhecemos, examinamos friamente e vencemos como um desafio. Estar no mundo tem, como dizia o filósofo Heidegger, não o sentido de “estar” como a água está no copo, mas de morar, estar junto, no sentido de ser algo que vivenciamos como alguém que tem de tomar conta de si mesmo, com todo o sentido da afetividade que essa noção pode ter.
É no interior da imagem do humano esboçada na letra (b), que o tema da morte adquire seu significado mais profundo. Paradoxalmente, assim como representa o fim das possibilidades, como um horizonte onde o homem não pode mais escolher ou a anulação da necessidade de tomar conta de seu ser, a morte aparece, especialmente pelo recurso ao soneto de John Donne, como uma benção, pois se, por um lado, a morte representa um enigma para quem vive, morrendo, a morte não mais conviverá conosco. “Morte morrerás”, é um tema que atravessa todo o filme.

Oh! Morte, que alguns dizem assombrosa
E forte, não te orgulhes, não és assim;
Mesmo aquele a quem visastes o fim,
Não morre; não te vejo vitoriosa.
Vens em sono e repouso disfarçada,
Prazeres para os que tu surpreendes;
E o bom ao conhecer o que pretendes
Descansa o corpo, a alma libertada.
Serves aos reis, ao azar e às agonias,
A ti, doença e guerra se acasalam;
Também os ópios e magias nos embalam,
Como o sono. De que te vanglorias?
Um breve sono que a vida eterna traz,
Golpeia a morte, Morte morrerás.

Nesse sentido, a morte não é representada como um tema revelador de desespero. Ela revela um certo alento, uma certa tranqüilidade, não apenas para alguém que está doente, mas na própria linha geral sobre a qual transcorre a vida. Morrer se assemelha um pouco, pelo menos conforme podemos ler nos últimos momentos do filme, com as mãos afetuosas da enfermeira atenciosa que traduzem silêncio e tranqüilidade; pode significar a orientadora já velhinha lendo a bela história da criança. Ao morrer, em parte, parece-me que isso é sugerido, ingressamos no reino da inocência e a vida pode transcorrer sem os cuidados e desafios que enfrentamos no turbilhão social. É verdade que o sofrimento e a morte não podem ser reduzidos a uma experiência poética sublime, mas o filme parece indicar claramente que a finitude humana é finita e que, vista desse modo, a própria morte pode representar uma condição de libertação de um sofrimento associado com o fato de sermos finitos. “Descansa o corpo, a alma libertada”, diz o soneto de John Donne. Lembremos o que Sócrates diz sobre a morte:


pensemos agora na grande esperança que há de que a morte seja um bem. Na realidade, com a morte tem de acontecer uma de duas coisas: ou o que morre se converte em nada e, portanto, fica privado para sempre de qualquer sentimento, ou, segundo se diz, a alma sofre uma mudança e passa deste para outro lugar. Se todo o sentimento cessa e o que há é como um sono, em que nada se vê, nem em sonho, então a morte será um benefício maravilhoso” (Platão, Apologia de Sócrates, p. 40)

Por último, gostaria de indicar um tema que é abordado com brilhantismo no artigo “A profissão sob Risco” do Professor Dr. Marco Antônio Oliveira de Azevedo. Nesse artigo ele afirma que “...o valor que centraliza a atividade médica é a saúde humana. Se é assim, então ‘aliviar o sofrimento’ e ‘salvar vidas’ são missões importantes, porém, subordinadas à meta principal: proteger, promover e recuperar a saúde das pessoas. Desse modo, entender o que significa ‘saúde’ de um ponto-de-vista médico é vital para a própria ética médica” (2206, p. 13). Creio que Uma lição de Vida (Wit) traz uma contribuição importante para este tema, pois a idéia de uma medicina curativa, voltada para o tratamento da doença, em geral provocando grande sofrimento, é um indício de que a saúde deve ser buscada primordialmente fora do registro dos processos de cura (na prevenção, especialmente), cuidando, sobretudo, do nosso modo de vida.

3 comentários:

Giovani Felice disse...

Flávio

Brincadeira tua quando afirmas que a melhor coisa da postagem é o poema do Donne!
Rapidamente: um dos melhores remédios -- se não for O melhor remédio -- para lidar com essa coisa, que eu acho na maioria das vezes horrorosa, que é a morte(mas para Richard Wolheim, em The Thread of Life, sempre horrorosa:'For death remais a misfortune even when life is no longer worth living.' p.267), eu dizia então, um dos melhores remédios, são reflexões como essas tuas.

Flavio Williges disse...

Obrigado, Giovani. Sempre doce e gentil! Vou na banca do Raphael segunda-feira. Nos vemos por lá?

Anônimo disse...

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