terça-feira, 22 de julho de 2008


CARTAS



Sou um dos filhos mais jovens de uma família de 6 irmãos. A melhor parte da minha infância transcorreu nas brincadeiras e no convívio com os mais velhos. Depois de uma certa época, meus irmãos saíram de casa para estudar e ganhar a vida. Como não tínhamos telefone, a comunicação entre nós, especialmente deles com os pais, acontecia através de cartas. Eu era encarregado de passar, depois da aula, no postinho dos correios da pequena cidade onde nasci para ver se havia chegado alguma coisa. Quase sempre as cartas vinham num envelopinho com bordas verde-amarelas.


Apesar da aparente frieza de meus pais, é impossível não lembrar a emoção e a ansiedade com que recebiam qualquer novidade dos filhos. Às vezes eles até disputavam a preferência na leitura num “dá pra mim; não! eu quero ler primeiro” as parcas palavras que amaciavam a distância e saudade. E assim, feitas as contas, receber uma carta era sempre uma grande felicidade, um motivo de encontro, de celebração humana.


Por presenciar cenas tão bonitas, durante muitos anos alimentei o desejo secreto de ser carteiro. Naquela época eu mal sabia o que era um funcionário, um profissional. Carteiro, para mim, era, na verdade, o mensageiro do amor, da amizade, do fim da saudade, um criador de laços. Hoje cartas, recados, manifestações manuscritas são cada vez mais raras. Escrevemos e apagamos com a instantaneidade da máquina. Por isso, quase sempre nossas palavras são pobres, supérfluas.


No caso dos carteiros, esse reverso histórico não deixa de ser irônico. Foi por desempenhar um papel estratégico no mundo desumano dos negócios e do dinheiro (distribuindo encomendas, contas de telefone, cartão, mensalidades escolares e outras cobranças) que os carteiros tornaram-se uma profissão poderosa, fundamental para o interesse de empresas e cuja greve provoca muitos problemas. Ao adquirir status no interior da lógica da mercadoria, os carteiros deixaram de ser uma ilusão romântica, tornando factível a exigência de reconhecimento concreto, convertido em salário, proteção e melhores condições de trabalho.



Mas, infelizmente, no mundo dos negócios, as decisões sempre circundam as leis de troca, de mútua dependência e interesse. Daqui uns dias muda o rumo da água e o barco segue noutra direção. Por isso as pressões, paralisações, desemprego, bem como os agradinhos e pequenos aumentos nunca desaparecerão do mundo do trabalho. Reconhecimento humano mesmo, estável, não se vê muito. Não sei se haverá algum dia. Para ele existir, deveria diminuir a circulação de contas, cobranças, e aumentar as notas de amor, de reconciliação, os escritos em linguagem franca, onde vidas, ideais, sofrimentos são acalentados conjuntamente, como na atmosfera dos antigos encontros que tive com meus pais em torno daquelas cartas com contornos verde- amarelos.

quarta-feira, 16 de julho de 2008







minha segunda sugestão do novo cinema alemão é o filme Aprendendo a Mentir (Liegen lernen, Alemanha, 2003) Dirigido por Hendrik Handloegten.



O filme recebeu um monte de críticas negativas que me parecem mais coisa de intelectual abobado. Não vou fazer uma defesa. Meu objetivo é outro. Só que indicar algumas razões pelas quais me parece que o filme é bem bom.



Para os apreciadores de literatura, Aprendendo a Mentir pode ser comparado com o gênero dos romances de formação como Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meinster do Goethe. Mas, num e noutro caso, a arte vai muito além do rótulo. Tanto o filme, quanto o livro do Goethe fazem muito mais do que narrar um caminho de amadurecimento. Aprendendo a mentir faz uma representação bastante sutil, alto astral, do "eu" sem referências fixas e multiplamente orientado da cultura contemporânea. E, mais ainda, o faz no difícil terreno da vida amorosa, sempre carregada de representações. As cores fortes do cenário destacam o multiculturalismo da Alemanha moderna, que contrasta profundamente com o crescente cultivo da ideologia do facismo que ainda se vê entre os imigrantes alemães que vivem no Brasil. Em termos de narrativa, lembra muito o Alta Fidelidade e Sideways, embora seja mais intimista que o segundo e mais denso e rico que o primeiro. Prá resumir, gostei prá caramba desse filme, pois mostra que a vida e o amor são sempre cheios de passados e presentes mal havidos, que não podemos concertar ou ajustar, de modo que nossa história acaba sempre sendo uma história de restos, pedaços de passado e tentativas de recomeço.



terça-feira, 15 de julho de 2008

O Janriê, meu amigo de trabalho e estrada - a estrada não é o trabalho- pediu para deixar uma lista de filmes que gostei. vou montar a lista na forma de postagens e depois criar um elenco.
Começo pelo chamado Novo Cinema Alemão, que trata, entre outras coisas, das abordagens pós-modernas do amor e do encontro, dos conflitos psicoafetivos, sonhos comunistas e o triunfo do capitalismo global. O foco central é quase sempre um acerto de contas com o passado dividido da Alemanha, como se os próprios realizadores estivessem realizando esse ajuste no plano das almas.
O que fazer em caso de incêndio? apresenta um retrato bem sutil e humorado da última fase do capitalismo, uma fase onde a história individual, cheia de vontade de revolução e igualdade, passa a ter de conviver, num grupo de amigos, com o design de linhas modernas dos aparelhos de celular, do mercado de capitais e por aí afora. o legal da história é que a ideologia socialista é retratada sem histeria, num tom juvenil, meio romântico e mostra como a vida vai se reinventando com os novos tempos.

quinta-feira, 10 de julho de 2008


Inovação
O que peço à poesia:
não que ela me baste
mas que me dê
a medida do possível,
a certeza do que basta.
(E a poesia me pede:
não o que ainda falta
mas o que excede
à palavra mais exata,
a plenitude sensível.)




Paulo Neves









Saiu Veneno Remédio: O futebol e o Brasil, do José Miguel Wisnik. Editora Companhia das Letras. 344 páginas. R$ 41,00
Tem tudo para ser o livro do ano. Não duvido... mesmo! Li duas páginas na Iluminura e fiquei espantado.
Só não levei por que tava sem grana. Segue, abaixo, uma pequena sinopse que pesquei na página da USP.






O ensaio traz uma reflexão sobre um dos mais apaixonantes esportes do mundo. O futebol tal como foi incorporado e praticamente reinventado no Brasil tem muito a dizer, sobre algumas de nossas forças e fraquezas mais profundas, ajudando a ver sob outra luz questões centrais da nossa formação e identidade. Wisnik declara: “Para o bem e para o mal é nesse lugar que o Brasil tem reconhecimento e diz alguma coisa. A questão é: O que significa isso? Qual é o lugar do Brasil no mundo por meio do futebol?”. Lançando mão de um sofisticado instrumento crítico que bebe na filosofia, na psicanálise e na crítica estética, o escritor desce às minúcias do jogo de bola e de sua evolução ao longo das décadas.

terça-feira, 8 de julho de 2008



Férias


Finalmente a locomotiva de julho chegou! Para professores e estudantes esses dias de descanso são cheios de reflexão. Dizem que os professores estão entre os profissionais que mais cedo abandonam as crenças idealistas em torno da sua prática profissional. Cansei um pouco do semestre, em sentido psicológico, mas não deixei de ser idealista. Ainda tenho esperança e a esperança, como dizia Rousseau, "a tudo embeleza". Mas por que fiquei cansado, se ensinar é minha vida?
Talvez por pensar no significado de "ensinar", na natureza complexa desse tipo de relação. Uma coisa que vem ocupando meus pensamentos é o que podemos entender por “êxito” na tarefa de ser professor. O sucesso em educação é uma variável das mais difíceis de medir. O que devo levar em conta para definir que as coisas andaram bem?
Frequentemente considero um conjunto mínimo de condições nas disciplinas propedêuticas que leciono: o domínio do conteúdo, do conhecimento e habilidades como capacidade de elaboração textual rigorosa, construção de argumentos e raciocínios com uma estrutura lógica consistente e qualidades morais e espirituais como a dedicação, esforço, capricho, amor pelo saber e a cultura. Poderia resumir tudo isso nessas palavras: competência técnica e competência ético-política. Quando meus alunos (e eu mesmo) mostro essas qualidades, considero que o semestre foi bem-sucedido.
Mas existem outras circunstâncias envolvidas na vida acadêmica, circunstâncias bem mais intangíveis, que respondem mais diretamente pelo meu sentido de esgotamento. Existe um registro subjetivo-existencial, da experiência do ser, que deveria ser monitorado na aprendizagem, um registro em que as ditas habilidades do mundo acadêmico são relevantes, mas não cobrem o universo inteiro da educação. Posso dar um exemplo: várias vezes converso com meus alunos, mas noto que não consigo ultrapassar o silêncio e a distância que o espaço da sala de aula e dos corredores cria. Então às vezes ensinar significa perder, aceitar uma separação definitiva de almas, como duas vozes e seres que falam, conversam, mas não se encontram. E esse sentido de afastamento, de não conseguir contato rico e significativo, como mensurá-lo quando queremos que o trabalho e a vida escolar nossa e dos outros seja boa e significativa? Além disso, se os mundos do aluno e do professor, por mais que tentemos, tendem a andar em direções opostas, como posso dizer que existo efetivamente para meus alunos, que minha presença é absorvida e esperada, em vez de ser um dia áspero?
Como tudo o mais na vida, ensinar não é uma atividade transparente; é recheada de palavras, de tentativas de explicar e dizer, mas também de desencontros, de silêncios e quebras. Espero o dia em que a pedagogia seja capaz de adentrar no universo existencial e nos ajude a entender melhor os limites da transferência e da partilha. Precisamos de uma pedagogia do intercâmbio das almas e da sua manifestação. Um pouco mais de amanhã, então.