segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Sobre a fragilidade humana em Lilies of the Field

           
Escrevi esse comentário há dois anos atrás, como parte do material didático das minhas aulas de Metodologia Filosófica para os alunos de licenciatura da UFSM. Costumo reservar duas aulas do programa da disciplina para falar do cinema como uma ferramenta de análise e investigação de problemas filosóficos. Mas o cinema importa para a filosofia não somente nesse aspecto metodológico ou instrumental. Para aqueles que estiverem interessados em conhecer mais sobre as relações do cinema com a filosofia, recomendo o texto instrutivo e didático do Prof. Jônadas Techio, da UFRGS. O texto está aqui.

Lilies of the field (1963) é um filme difícil de classificar. Ele foi um dos primeiros filmes americanos a ter um ator negro (Sidney Poitier) no papel principal. No entanto, ele não é um filme sobre a história da população negra americana ou sobre o racismo norte-americano; não é nem mesmo um filme sobre religiosidade ou uma crítica ao consumismo americano e libertação através do conforto material que caracterizou o american dream - em oposição ao caráter frugal, a disciplina e persistência característica das regras monásticas (a história toda se passa num assentamento de freiras numa região semi-desértica do Arizona). Ao mesmo tempo, seria um erro negar que esses temas não sejam parte do debate que o diretor desejou promover. O tom geral parece ser de comédia, mas há muitas passagens do riso e alegria para o silêncio e a melancolia da perspectiva dos principais personagens, o que também torna difícil dizer que o filme foi “feito para rir”. E são essas pequenas variações e sutilezas que  fazem de Lilies of the Field uma ilustração delicada da própria vida, com seus altos e baixos, com os chamados do mundo e da solidão e, como espero mostrar, com intervalos importantes para a percepção da, normalmente esquecida ou ocultada, fragilidade e fraqueza humana. Abordarei dois pontos gerais nesse comentário: o primeiro diz respeito ao sentido de sonho e solidariedade que o filme revela a partir da fé simples das pessoas. Há um fio de irmandade e solidariedade que pretende se impor sobre todo tipo de egoísmo (o carpinteiro, o empreiteiro, a madre superiora, todos vão, aos poucos, encontrando espaço para “abrigar o outro”). O segundo aspecto é a sutileza da abordagem das questões raciais, que vou abordar rapidamente.       
Poitier foi o primeiro ator negro a receber um Oscar por esse trabalho. Ele faz o papel de Homer Smith, um carpinteiro itinerante (sem emprego fixo). Durante uma passagem pelo deserto do Arizona, ele faz uma parada numa missão religiosa para colocar água no radiador de seu carro. A madre superiora pede que ele conserte o telhado da sede da missão. Entendendo que seria contratado, ele aceita o trabalho. Na manhã seguinte, ela se recusa a pagá-lo e diz que, como resposta a suas preces,  Deus o enviou para construir sua capela. Smith tenta convencer a madre a pagá-lo citando o Evangelho de São Lucas e Madre Maria responde pedindo a ele que leia outro verso bíblico do Sermão da Montanha: “Olhai os lírios do campo, como ele crescem; não trabalham e nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda sua glória, se vestiu como qualquer deles”. Essa é a passagem que dá título ao filme. Ela significa, entre outras coisas, que nossa vida não pode ser resumida aos tesouros da terra.
O assentamento das freiras não tem qualquer recurso; elas sobrevivem comendo alguns vegetais que o clima árido proporciona, pão, ovos e leite. Mesmo assim, Smith resolve, por razões que irão, aos poucos, tornando-se mais claras, construir a capela para a comunidade (um gesto que parece transformar vários personagens descrentes, especialmente o padre da comunidade). Há uma discussão ao longo do filme entre o empreiteiro e o dono do restaurante (dois materialistas, digamos assim) sobre as razões que o levaram a construir uma capela sem receber nenhum pagamento em troca. A sugestão é que se trata de um seguro para outra vida, no caso dela existir. Mas Smith não parece ter esse tipo de convicção. Ele vive a vida de maneira aberta, alegre e hedonista. De algum modo, no entanto, seu coração é tocado pela persistência e abnegação das monjas e pelo desejo de deixar uma marca verdadeira, ainda que simples, no mundo. Essas duas razões parecem tê-lo levado a tentar construir sozinho a capela e depois a aceitar a colaboração de outros trabalhadores. O filme, nesse aspecto, adota um argumento muito comum nos romances de formação (como Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meinster, de Goethe): o personagem principal vai passando por um conjunto de pequenas transformações, de um certo estado do eu para outro, superior. Mas não me parece claro que haja realmente o reconhecimento de um estado superior do eu que seria valioso ou recomendado cultivar. Há, sim, deleite ou regozijo dos personagens com a dedicação às tarefas não-instrumentais, as únicas que fazem a vida valer a pena, dirá Thoreau, mas não parece que uma receita de vida esteja sendo oferecida. A razão dessa avaliação é que as transformações dos personagens, tanto no história do herói de Goethe, quanto no filme, não são fáceis de avaliar. Está claro que não é a transformação de alguém que está perdido e acaba encontrando-se consigo mesmo, com o próprio destino, como ocorre frequentemente nas lendas de heróis. Smith é um personagem enigmático muitas vezes e não há indícios que sua dedicação à causa da irmã tenha algum fundamento de longo prazo (como uma conversão) ou adoção de um tipo de vida mais piedosa. Assim como aconteceu com Wilhelm Meinster, que não reconhecia em si um eu talhado para o mundo burguês dos negócios (que herdou do pai), não podemos dizer afinal se ele aprendeu algo, se encontrou seu “eu verdadeiro”, pois a história continua em aberto, ilustrando um eu dinâmico, que não parece ser capturado nas imagens tradicionais (platônicas) do percurso da alma do não-ser para o ser, da sombra para a luz, da inautencidade para a autenticidade. Essa indefinição é um central para os objetivos de Lillies of the Field. Por isso, há muitos sentidos em que podemos interpretar a determinação da Madre Maria e a resistência inicial de Smith até o momento em que a resistência é transformada em envolvimento e orgulho pelo trabalho realizado. Uma alternativa seria conceber esse conflito entre almas como parte da intervenção divina, de nossas vidas como sendo a vida de crianças brincando nos jardins do Senhor. Há muita beleza nessa imagem, se pensarmos em nossas vidas modernas, de pessoas ensimesmadas, vaidosas, cheias de si e inteiramente dedicadas às suas vidas materiais, de conquistas um tanto quanto vazias. Um mundo de fé simples e sincera, parece significar, nesse caso, o reconhecimento do mistério da vida, de devoção gratuita às obras do amor. O que estou querendo dizer é que estamos profundamente tomados por uma imagem do eu produtivo, das relações e funções como parte de rotinas de obrigação e trocas, enquanto deixamos de reconhecer um eu que extrai significado e satisfação pelo simples fato de estar aí, em meio as coisas, tendo experiências mais e menos significativas. (Imagine, por exemplo, a tarefa de dar uma fundamentação utilitarista à dedicação de pais ou de pessoas que cuidam e convivem com animais. Não há nenhum retorno ali, além da ação e daquilo que a constitui). Parte dessa imagem poderia ser chamada aqui para entender as motivações de Smith. Em lugar de pensar a vida como um lugar sem sentido, de absurdo, o filme parece especular com a possibilidade de confiar nas obras do amor, na fé dos homens simples, numa atitude de gratidão e bondade despreocupada de retornos. O canto batista entoado por Homer e o coro das monjas, lembrando um Cristo menino, inocente, na manjedoura, pescando homens para realizar seu trabalho parece ter esse sentido. Nós poderíamos chamar essa primeira parte de dimensão ética ou existencial. Mas há, no filme, também uma dimensão política, construída através das diferentes alusões à questão racial americana.
Há várias alusões raciais em Lillies of the Field. Todas elas são sutilmente construídas. Uma das mais emblemáticas aparece logo no início, a imagem viril e máscula de Smith, que tira a camisa para lavar o corpo depois do trabalho. O que esperar de um homem negro no deserto em meio a um grupo de freiras? Na cultura contemporânea, especialmente em relação ao corpo negro, as explorações (literárias e na cultura popular) vão, geralmente, na direção do erotismo e sexualização. A escolha  de expor o corpo num contexto puritano pode ter partido da pretensão de lembrar a violência e sofrimento dos castigos que foram impostos aos escravos nos USA e noutros países que permitiram a escravidão. A cena completa, no entanto, deixa claro que o que importa ali é um corpo negro numa postura afirmativa, pronto para o trabalho honesto e competente. Nesse sentido, como explica o blog blackhistoryreview, “O filme aborda com muita sutileza o racismo, tão sutilmente que alguéns espectadores podem não perceber o tema. Como outros já notaram, ela não carrega nenhuma raiva que poderia ser esperada de um filme dos anos 60 sobre interação racial. (in: blackhistoryreview.com). E justamente essa opção, de mostrar a confiabilidade e auto-confiança de Homer, talvez seja a estratégia central de resposta  do filme ao racismo (uma estratégia semelhante, embora mais explícita em muitos momentos, parece estar presente num outro filme de Poitier: Guess who comes to dinner?). Homer não é nem mais e nem menos por ser negro. Ele é o que ele é a despeito de sua cor, tão confiante em suas habilidades como qualquer outro herói de qualquer outro filme. Quando o empreiteiro branco o chama de “boy” (garoto ou moleque), Homer responde do mesmo modo: chama-o de “boy” no mesmo tom, embora sem animosidade, assim como qualquer homem poderia fazer com alguém igual. Essa abordagem sutil das tensões raciais, aliada às  circunstâncias improváveis (um homem negro num convento) mostram como é difícil demarcar o filme. Ele poderia ser, nesse aspecto, um filme político, que apresenta uma alternativa para os conflitos étnicos americanos.
Além do emblema do corpo, um outro pressuposto fundamental para entender a sutileza e profundidade das questões raciais tocadas no filme consiste em reconhecer que os fenômenos do racismo e do preconceito se dão no plano das representações simbólicas (o estigma), as quais convertem-se em vivências particulares de negação ou sujeição daquele que sofre a discriminação ou preconceito. Representações e práticas atuam diretamente na construção de identidade e personalidades. Quem sofre o preconceito são pessoas discriminadas, são ‘eus” não recebidos em seus espaços de convivência e manifestação individual e material, como seres intelectuais e como seres produtivos. Através do preconceito, pessoas deixam de “abraçadas pelo mundo”, elas podem senti-lo como um lugar incômodo e perturbador, um lugar onde seria melhor não estar. O protótipo desse sentimento é o isolamento, a ausência de irmandade, a diferença, a separação. O filme lida o tempo todo com o jogo de proximidade e afastamento. As pessoas não são intimas, em nenhuma circunstância, mas se reconhecem admirando ou mudando sua perspectiva acerca do “outro”, do não-eu. Há uma lição pessoal e racial, nesse sentido, nos conflitos e admiração mútua que marcam os dois personagens principais (os personagens fortes de um homem negro e uma mulher branca). O filme mostra ambos como pessoas parecidas, firmes, inflexíveis e humanas, capazes de mudar suas perspectivas em contato com a diferença, num lento aprendizado, aperfeiçoando-se em contato com o outro. Nesse aspecto, o filme contribui para reconhecer a fraqueza (teórica e moral) dos racistas: aquelas pessoas que consideram outras pessoas inferiores, desprezíveis, ou que merecem um tratamento degradante em função de variáveis raciais como a cor. O filme é pedagógico, nesse aspecto, pois mostra que as pessoas não são o que nossas convicções negadoras, a dureza ou frieza de nossas almas, nos convidam a pensar. E o filme parece, nesse sentido, convidar-nos para uma celebração de nossa humanidade comum, tal como ela é representada na fiesta, onde a bebida e a dança alegre são o vocabulário de aproximação entre os homens. Há nele, nesse sentido, menos desencanto, mais esperança, do que no personagem Isaías, do livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha, do escritor brasileiro Lima Barreto.
Uma outra dimensão do racismo abordada no filme é a dimensão linguística. Tal dimensão transparece, na cultura comum, através dos xingamentos, das piadas pejorativas, dos predicados comumente empregados pelos racistas. O repertório linguístico pejorativo é parte de um estoque de idéias e intenções escondidas que, conforme a necessidade, podem ser postas em operação. No filme, esse aspecto aparece principalmente através da figura do empreiteiro que diz conhecer o  “tipo de homem” que Homer é; no termo “boy” (já denotado) e também quando Homer diz que não sabe se ser chamado de “gringo” é melhor ou pior do que as outras coisas que já foi chamado.
Todos esses elementos, descritos de forma rápida e superficial aqui, contribuem para mostrar que a reflexão sobre os limites e aperfeiçoamento do parque humano é um desafio constante.  Se somos atraídos pela idéia de um mundo de solidariedade e irmandade, o trabalho pessoal e existencial, mas também político-social, de elaboração parece constante, sem fim. No filme, o diretor aposta com convicção na importância de um sentido de abertura para o outro e no reconhecimento do mistério e fragilidade que ronda nossas vidas. É a minha aposta também.


International Studies



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My first wise international advise to anyone interested. Never opt to study with a very famous professor (like, say, Habermas, Peter Singer, or Martha Nussbaum), especially if you are not well trained in the language and culture of your sponsor and will stay abroad less than one year. I'm not saying your choice will be a total wast of time if you do go and study with Nussbaum or some other philosophically well-known name. Perhaps you might get lucky and meet someone who is a leading scholar and who is also available to you, as I'm judging my time in Davis with Prof. Copp will be. But my experience says that it is wiser to assure that you will be in a place where people welcome you and offer equal actual conditions for effective interaction. Sometimes Brazilian students and professors assess their options for international studies in terms of how they will later be perceived by their Brazilian colleagues, specially those who didn't have the same opportunities to do research abroad. "I have been studying with God, so you have  to see me as a demi-god", they appear to think. But this is completely nonsensical. International studies is for meant to be a learning experience and for acquiring new philosophical and personal abilities. And the best way for achieve this is to dive into all the wonderful resources that internationally good ranked universities offer, such as research groups, libraries, classes, and regular seminars and colloquia. Choose a place where people know who you are and how much you want to learn and teach, and not a place that you  believe will make your fellows back home envy you. It might be good to be envied for having been supervised by a great philosophical name. But life is short and surely it's much better to be envied for the abilities you have acquired and can put to work somehow.  Thanks to Prof. Severo for helping me revise this first advice.  I think it might be interesting especially to our graduate students in Santa Maria. I'll try to write down others from time to time.

domingo, 12 de junho de 2016









AMOR E ESQUECIMENTO


Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e mal amar, amar, desamar, amar? 
sempre, e até de olhos vidrados, amar? 
(Carlos Drummond de Andrade) 



Em nossos devaneios secretos é comum formarmos uma imagem da vida em que a idéia de “realização plena” no trabalho, no amor, na família, etc. seria algo como um estado de paz e felicidade permanente; nossa imagem ideal do homem é como uma estrela cuja luz cintilante irradia sem cessar. Mas isso não passa de uma idealização. Nossos melhores momentos são tênues e fugazes. Em todas as porções da vida nossa grandeza é episódica, se manifesta em instantes; no restante do tempo, o que temos é um lote de problemas, diferenças, temores e dificuldades para lidar. 
É talvez pensando em nossas fantasias de plenitude amorosa mais recônditas que a grande maioria das histórias de amor que vemos no cinema, quando não são perfeitas em tudo, aparecem envoltas numa atmosfera ideal, irreal, que pouco ou nada ensinam sobre o amor real, cotidiano, e seus revezes. Um romance onde o sexo, os gostos e manias dos amantes encaixam perfeitamente anima e dá vida às nossas ilusões. O amor perfeito, no entanto, é uma idéia que não ajuda a viver. 
Brilho Eterno de uma mente sem lembranças é uma prova cabal de que uma história de amor repete os gestos que traduzem a história inteira de nossa vida, sem maculá-la, sem torná-la pobre ou diminuída. Embora pouco ou nenhum apelo seja feito ao eterno, às “almas gêmeas”, o amor que veste as cores do cotidiano do roteirista Charles Kaufman parece tão belo e rico quanto aquele que figura em nossas fantasias de perfeição. Ele aparece ali como algo simples, sem ser banal. É assim como correr e brincar; revela-se ficando abraçados num canto qualquer ou trocando carícias e segredinhos embaixo do cobertor.
A promessa de Brilho Eterno não é a da salvação, da redenção no paraíso eterno dos amantes; é a promessa de uma felicidade sutil, que implica o aprendizado e aceitação de nossos limites, o reconhecimento e o cuidado com o outro. Pois é especialmente quando uma história de amor termina, quando a separação arranca o solo que sustenta nossos pés, que o lugar do “outro”, daquele que não sou eu, mostra toda sua ameaça e perigo. Esse imarcescível “eu” que já não me diz mais respeito caminha conosco na forma incômoda da lembrança. A lembrança é como um hóspede que vive em nossa casa. Quando sua presença não é mais querida, ela é causa de sofrimento, passa a nos perseguir, rouba nosso centro e bagunça inteiramente o sentido de nossa narrativa individual. É por isso que no filme esquecer se traduz em apagar todas as imagens significativas de dependência, de ligação com o outro, destruindo presentes, imagens, sinais; destruindo o reconhecimento de meu “eu” partilhado. 
A cura da lembrança é o esquecimento. O esquecimento é o não-lugar, o exílio daquilo que não pode mais ser parte da vida. Só o artista do esquecimento é capaz de encontrar um lugar em que a lembrança dolorosa desapareça sem deixar vestígios. O esquecimento é, nesse sentido, uma importante virtude e é por isso que Nietzsche não se cansava de dizer: “divina é a arte de esquecer”. Mas como descobrir esse segredo búdico? Como controlar e, principalmente, apagar nossas memórias mais tristes? 
Em tempos de tecnologia e de vida difícil, uma forma eficaz de não reconhecer nosso vínculo com outras pessoas poderia ser simplesmente acionar uma tecla do computador e “deletar” de nossa memória tudo aquilo que queremos esquecer. Com essa metáfora, Kaufmann captura de maneira excelente o onipresente papel da ciência e o lento processo de “artificialização” da satisfação com a condição humana que vem se calcificando no mundo contemporâneo. A “droga que cura e acalma” é, no filme, um programa de computador que mapeia os setores do cérebro que armazenam as memórias daqueles que um dia amamos (e já não queremos mais lembrar) e depois as apaga uma a uma.  Um processo que, metaforicamente, repete a fila nas farmácias em busca do Viagra, do Prozac, da fórmula do emagrecimento, do “anti” qualquer coisa que lembre que estamos vivos, que temos sentimentos que não sabemos bem como lidar e um corpo que envelhece, pode ficar doente e morrer. A mesma “ciência neutra” que faz milagres sobre o corpo e transforma cirurgiões em “celebridades”, dá ao cientista de Brilho Eterno o estatuto de  um pequeno Deus que distribui as sementes de uma vida feliz. O luto da perda já não existe mais!   
No entanto, toda promessa de felicidade milagrosa seja pela ciência, seja por qualquer outro meio, tem um lado sujo. Viver sem memórias, sem lembranças, sem nossa história e a história de nossos erros pode ser confortante, mas mostra o quão frios e desumanos podemos nos tornar quando aliamos nosso egoísmo às maravilhas da tecnologia. Por trás da vigorosa dialética do amor e do esquecimento, Kaufman nos confronta com uma questão radical: alguém que pode conceber, desenvolver e deixar os outros destruírem totalmente a memória de outros seres humanos é ainda um homem? De modo similar aos personagens da fábula de Stevenson, Dr. Jekyll and Mr. Hyde, a “atitude científica” de fazer desaparecer as memórias que constituem parte essencial de nossa identidade autobiográfica e do lugar do outro em nossas vidas pode gerar formas de monstruosidade, como do médico que fomenta a paixão de sua jovem e ingênua secretária, para depois apagá-la tranqüilamente, ou do assistente que rouba calcinhas e segredos de suas pacientes em proveito próprio. 
No final fica uma lição importante: o amor e seu fim não-sublime na perda pode ser causa de sofrimento, pode deixar seqüelas, mas toda a dor desaparece quando acompanhado de um encontro com o outro, como se fosse um encontro consigo mesmo. Mesmo na perda, o amor não tem nenhum parentesco com a anulação daquilo que um dia amamos; saber amar significa, como na poesia de Drummond, “amar, depois de perder”. Assim, despido de exigências e temores, o amor pode surgir alegre e poeticamente vivo, anunciador de uma cultura onde a mitologia da eternidade é substituída por uma mitologia que encontra satisfação na condição humana, que reconhece plenitude no amor imperfeito, decaído (o único que realmente conhecemos) e aceita a memória pessoal do sofrimento na separação, sem a violenta necessidade de assassinar o outro ou dissipá-lo de nossas vidas. 
 Flavio Williges, Santa Cruz do Sul, dezembro  de 2004. 

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

As lições de amor das crianças



Estava lendo o artigo "A invenção da criança da psicanálise" de Diana Corso, que registra, entre outras coisas, o percurso freudiano de abordagem da sexualidade infantil, da criança como ser desejante e outros processos constitutivos da infância. Fui lê-lo pois queria saber se, afinal de contas, Freud é, como já ouvi dizer, o "descobridor da maldade infantil". Sim, me disseram mais de uma vez que é um erro pensar que as crianças "são anjos bonzinhos"; "crianças são más, são sádicas" e Freud, o pai da Psicanálise, o teria mostrado. O artigo ajudou a perceber que a conversa é um pouco mais complicada. Essa parece ser mais uma daquelas questões que não admitem uma resposta do tipo sim ou não. Deixo a questão em aberto, lembrando que crianças podem ser boas. Infinitamente boas. Boas de um jeito que comove o coração de adultos. E é sobre essas lições possíveis de bondade inocente que desejo falar. A história é parte de minhas conversas sobre mortalidade e parentesco com meu filho mais jovem, o Francisco. A primeira experiência de generosidade que tive com ele aconteceu quando falamos sobre a morte de meu pai. A morte, a perda de alguém que amamos é talvez, de todas, a experiência mais difícil que podemos ter. É difícil explicá-la. Eu mesmo a descobri lá pelos 6 ou 7 anos quando um filhotinho de uma coelha que criávamos morreu. Era um filhote pequenininho, fofinho, de uns 10 dias, que já caminhava, mas teve uma febre e morreu, assim como seus outros 10 ou 11 irmãos. Passei várias horas acariciando ele, sem entender direito o que havia acontecido. Minha mãe, quando descobriu o que eu estava fazendo, resolveu tudo de um jeito simples: deu um tapa na minha mão e disse: "ele tá morto, não tá vendo". E me mandou enterrá-lo ou jogou-o fora. Um pouco assustado, entendi que morrer acontece e não há muito a ser feito a não ser aceitar (e especular sobre o pós-morte).
Perdi meu pai há alguns anos. De um tempo para cá, F. notou que visitamos minha mãe, identificada by description como "a vovó da vaquinha", mas não meu pai. Um dia, voltando da escolinha, ele me perguntou: "quem é seu pai?" Contei para ele que meu pai, o vovô Santo, havia morrido num acidente de carro e estava enterrado num cemitério. Ele pareceu entender que meu pai tinha caído, estava machucado e dormindo, mas depois iria acordar. Ele viu que eu falava com tristeza do assunto e então comentou, de um jeito que me fez chorar, "Ah não se preocupe papai, ele vai melhorar". Como queria que ele soubesse que a morte, assim como algumas doenças, é final e incontornável, falei para ele: "não, ele morreu; quando as pessoas morrem, elas não melhoram mais. Elas ficam como aquele sapo que vimos na estrada" (estava fazendo referência ao cadáver de um sapo esmagado que encontramos num passeio de bicicleta). Ele ficou em silêncio e não disse mais nada. Um tempo depois, assistindo o Bolt, o super-cão, vi ele dizer preocupado: "viu, aquela menina não pode ficar correndo no meio dos carros. Ela vai ser esmagada e morrer". Talvez eu tenha exagerado na imagem do sapo, mas queria que ele soubesse que morte é uma coisa séria, que devemos evitar e que, quando acontece, não tem volta.
A ausência do meu pai também fez o Francisco perceber que há algo diferente com a família do Bruno, seu irmão por parte de pai. Sempre que vamos visitar o Bruno, encontramos ele e a mãe, mas nunca o pai dele (que sou eu). Como F. tem pai e mãe, ele esperava encontrar o pai e a mãe do Bruno na casa dele. Esses dias, reconhecendo a diferença, ele me perguntou: "quem é o pai do Bruno?" Esse parece ser um erro simples, mas, assim como ele tentou me consolar quando contei a história da morte de meu pai, essa história também me deixou comovido. Francisco e Bruno são dois irmãos que se amam profundamente. É uma preocupação, especialmente para pais separados, saber como o irmão mais velho receberá o irmão mais novo. Até onde me lembro, eles se gostaram desde sempre (como mostra a foto acima); e testemunhar amor e carinho entre irmãos talvez seja a maior alegria da vida de um pai. Quando me exalto e grito com o Bruno, o Francisco diz: "papai, não fála assim com o mano". Conheço poucos adultos que seriam capazes de reconhecer que um irmão pode ser filho de outros pais, sem deixar de vê-lo como irmão. É preciso um tanto de bondade e muita inocência para ver outra pessoa como um objeto de amor, apenas, e cuidá-lo e defendê-lo.
Nosso mundo tem sido dominado pela violência e sofrimento. Há dor por todos os lados, todos os dias. Dor que destrói. É difícil ser feito apenas de amor. Mas as crianças são, muitas vezes, apenas amor. E por serem amor, elas ensinam, mesmo sem saber muitas coisas.







quarta-feira, 1 de abril de 2015

Meus livros favoritos de Ética e Filosofia

Esses dias recebi pelo Facebook uma lista de livros que ensinam a gostar de filosofia. Acho que não me senti atraído por nenhum deles. Resolvi, então, fazer a minha lista de livros ou textos de ética e filosofia geral. A lista não tem ordem de relevância e não oferece uma imagem completa da riqueza e fascínio da Filosofia, mas seguramente apresentará ao leitor algumas das páginas mais bem escritas e prazerosas de toda a história do Ocidente. Citei uma pequena passagem ao lado de cada texto para que os leitores possam ter um preview do conteúdo.

Cartas a Lucílio de Sêneca

O objetivo da filosofia consiste em dar forma e estrutura à nossa alma, em ensinar-nos um rumo na vida, em orientar os nossos atos, em apontar-nos o que devemos fazer ou por de lado, em sentar-se ao leme e fixar a rota de quem flutua a deriva entre escolhos. Sem ela ninguém pode viver sem temor, ninguém pode viver em segurança. (SÊNECA, 2009, Livro II, Carta 16)



As Meditações de Marco Aurélio 

Da vida humana, a duração é um ponto; a substância, fluída; a sensação, apagada; a composição de todo o corpo, putrescível; a alma, inquieta; a sorte, imprevisível; a fama, incerta. Em suma, tudo que é do corpo é um rio; o que é da alma, sonho e névoa; a vida, uma guerra, um desterro; a fama póstuma, olvido. O que, pois, pode servir-nos de guia? Só e única a Filosofia. Consiste ela em guardar o nume interior livre de insolências e danos, mais forte que os prazeres e mágoas, nada fazendo com leviandade, engano ou dissimulação, nem precisando que outrem faça ou deixe de fazer nada, acatando, ainda, os eventos e quinhões que lhe tocam, como vindos da mesma origem qualquer donde vem ele próprio; sobretudo, aguardando de boa mente a morte, qual mera dissolução dos elementos de que se compõe cada um dos viventes. (Marco Aurélio, Meditações, p. 269)




A Ética a Nicômaco de Aristóteles

Quero dizer a virtude moral, pois ela concerne a ações e emoções, nas quais há excesso, falta e meio termo. Por exemplo, é possível temer, ter arrojo, ter apetite, encolerizar-se, ter piedade e, em geral, aprazer-se e afligir-se muito e pouco, e ambos de modo não adequado; o quando deve, a respeito de quais, relativamente a quem, com que fim e como deve é o meio termo e o melhor, o que justamente é a marca da virtude. (EM, I, 1106b20-24) 


Apologia de Sócrates de Platão

Estou tentando apenas convencer-vos, aos mais jovens e mais velhos, de que não deveis preocupar-vos com os corpos, com as riquezas ou com alguma outra coisa antes de vos preocupardes primeiramente com a alma, de forma que se torne o melhor possível, afirmando que a virtude não nasce das riquezas, mas da própria virtude vêm, aos homens, as riquezas e todos os outros bens, tanto privados como públicos.






A soberania do Bem de Iris Murdoch
Que a vida humana não tem nenhum ponto de vista externa ou telos é uma idéia tão difícil de sustentar quanto o seu oposto, e eu simplesmente a aceitarei. Eu não vejo nenhum indício que sugira que a vida humana não seja algo auto-contido. Existem propriamente muitos padrões e propósitos na vida, mas não há nenhum padrão ou propósito geral que esteja, como se fosse, assegurado de um ponto vista externo, do tipo que filósofos e teólogos costumam buscar. Nós somos o que parecemos ser: criaturas mortais passageiras, sujeitas à necessidade e ao acaso. Isso é dizer que não há, a meu ver, Deus no sentido tradicional desse termo; e que o sentido tradicional é talvez o único.



Investigação sobre os Princípios da Moral de David Hume


Vamos analisar o complexo de qualidades mentais que constituem aquilo que, na vida cotidiana, chamamos de mérito pessoal, vamos considerar todos os atributos do espírito que fazem de alguém um objeto seja de estima e afeição, seja de ódio ou desprezo; todos os hábitos, sentimentos ou faculdades que, atribuídos a uma pessoa qualquer, implicam ou louvor ou censura e poderiam figurar em algum panegírico ou sátira de seu caráter e maneiras (I, p. 25).  (E, p. 173-174)


Resposta à Pergunta: o que é Esclarecimento? de Immanuel Kant

Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indíviduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.



O valor da Filosofia de Bertrand Russell

O homem que não tem a mais pequena capacidade filosófica, vive preso aos preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais da sua época ou da sua nação, e das convicções que se formaram na sua mente sem a cooperação ou o consentimento reflectido da sua razão. Para um tal homem o mundo tende a tornar-se definido, finito, óbvio; os objectos vulgares não levantam quaisquer questões e as possibilidades invulgares são desdenhosamente rejeitadas. Assim que começamos a filosofar, pelo contrário, verificamos que mesmo os objectos mais comuns levam a problemas a que apenas podemos dar respostas muito incompletas. Embora a filosofia seja incapaz de nos dizer com certeza qual é a resposta verdadeira às dúvidas que levanta, é capaz de sugerir muitas possibilidades que alargam os nossos pensamentos e os libertam da tirania do costume. Assim, embora diminua o nosso sentimento de certeza quanto ao que as coisas são, a filosofia aumenta muito o nosso conhecimento do que podem ser; elimina o dogmatismo um tanto arrogante daqueles que nunca viajaram na região da dúvida libertadora e, ao mostrar as coisas que são familiares com um aspecto invulgar, mantém viva a nossa capacidade de admiração. 




Os Ensaios de Ralph Waldo Emerson
Em toda obra de gênio, reconhecemos nossos próprios pensamentos rejeitados: eles retornam a nós com uma certa majestade alienada. As grandes obras de arte não nos ofertam lição mais tocante do que esta. Elas nos ensinam a ser fiéis, com inflexibilidade bem-humorada, a nossas impressões espontâneas, mormente quando o clamor inteiro das vozes encontra-se do lado oposto. De outro modo, um estranho dirá amanhã, com bom senso magistral, precisamente o que temos pensado e sentido o tempo todo, e seremos forçados a aceitar de outrem, com vergonha, nossa própria opinião. [...] Confia em ti: todo o coração vibra em consonância com essa corda de ferro. Grandes homens sempre agiram assim e fiaram-se, à maneira das crianças, no gênio de sua época, revelando sua percepção de que o absolutamente digno de confiança encontrava-se assentado em seus corações, trabalhava pelas suas mãos, predominava em todo o seu ser. E agora, sendo homens, devemos aceitar com elevação de espírito o mesmo destino transcendente; e não nos fazer de menores ou inválidos, protegidos em um canto, nem fugir como covardes ante uma revolução, mas exercer o papel de guias, redentores e benfeitores.


Walden e o ensaio Walking de Henry David Thoreau
 A vida é coerente com a natureza indomada. O mais selvagem é o que está mais vivo. Por não estar dominado pelo homem, a presença do que é selvagem o renova. Para aquele que quer seguir em frente sem parar para descanso, que cresce rapidamente e exige tudo da vida, o melhor lugar é uma terra nova ou selvagem cheia de máteria-prima para a vida. O homem com essa disposição prefere subir pelos dóceis troncos das árvores primitivas das florestas (Thoreau, Walking, p. 124-125)





As Meditações Metafísicas de Descartes


…aplicar-me-ei seriamente e com liberdade em destruir em geral todas as minhas antigas opiniões. Ora, não será necessário, para alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, o que talvez nunca levasse a cabo; mas, uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente impedir-me de dar crédito às coisas que são inteiramente certas e indubitáveis, do que às que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas.



Os Ensaios de Michel de Montaigne

Saber lealmente gozar do próprio ser, eis a perfeição absoluta e divina. As mais belas vidas são, penso, as que se adaptam ao modelo geral da existência humana, as mais bem ordenadas e de que se excluem o milagre e a extravagância”. (Ensaios, III, p. 386-388)





Da Certeza de Ludwig Wittgenstein

‘Eu sei que aquilo é uma árvore’ – isto pode significar todo tipo de coisa: Olho para uma planta que considero ser uma bétula jovem e que outra pessoa julga ser uma groselheira preta. Essa pessoa diz ‘ é um arbusto’; eu digo que é uma árvore. Vemos qualquer coisa no nevoeiro que um de nós pensa ser um homem e o outro diz ‘eu sei que aquilo é uma árvore’. Alguém pretende testar os meus olhos, etc, etc. ...De todas as vezes, ‘aquilo’ que declaro ser uma árvore é diferente







domingo, 7 de dezembro de 2014

Meus dias na Califórnia

Sonhos: Conhecer a Califórnia foi parte de um sonho antigo nascido, suponho, no tempo das minhas férias colegiais, quando passava (como muitos o fazem até hoje, creio), tardes inteiras assistindo filmes e perseguições policiais nas estradas da Costa do Pacífico ou Westerns (ou talvez tenha sido só um desejo extraviado por neve branca, pelos riachos e montanhas do Oregon, Alasca ou algum outro lugar desconhecido). O certo é que minha adolescência e o início da "idade da razão" foi  embalado pelos ritmos do rock, o jazz e blues; pelo Jim Morrison da minha velha camiseta rasgada, a Janis do Monterey Pop Festival (que assisti com o Clayton e o Mauro, na sala de vídeo da biblioteca da UFSM lá por 94), o Hendrix e todos os loucos das guitarras e festivais que pudermos imaginar.  No mundo da literatura e poesia, li Walt Whitman, o submundo da literatura de Bukowski, a história da geração beat, Melville e outras coisas mais modernas (como Philipe Roth e Jonathan Franzen). Mais recentemente tenho estudado alguma coisa de Emerson, Thoreau e James e tudo o que posso da exuberante tradição da filosofia analítica norte-americana (de Putnam, Cavell, Davidson e tantos outros). Nenhum homem letrado do nosso tempo pode, com justiça, se dizer alheio a essa rica e valiosa tradição cultural. Na verdade, sob qualquer ângulo que se avalie o universo das artes, humanidades e ciências,os USA são a terra de ícones inescapáveis, um lugar que o imã de toda mente curiosa irá apontar.
Alguém me falou, antes de deixar o Brasil, que eu voltaria diferente. Toda a viagem verdadeira é uma viagem para dentro de nós mesmos. Não creio que se possa descobrir um lugar como águias que roubam e estilhaçam a carne nova de suas vítimas. Uma viagem verdadeira nunca  é uma descoberta; se parece mais com um encontro. Emerson escreveu certa vez: "Aqueles que fizeram a Inglaterra, a Itália ou a Grécia veneráveis à imaginação, fizeram-no fixando-se avidamente onde viviam como a um eixo da terra. A alma não é nenhum viajante"? Ao menos posso dizer que "não saí mundo afora com a esperança de encontrar algo maior do que aquilo que já conhecia". Encontrar o norte da América foi, então, uma forma de descobrir a mim mesmo ou fazer qualquer coisa que possa ser descrita como próxima dessa experiência. E meu relato aqui deve ser bastante subjetivo, um amontoado de impressões recolhidas em não mais do que trinta dias, numa pequena cidade e universidade da California e em alguns passeios próximos por cidades maiores e montanhas. "Toda essa miscelânea que vou gratujando aqui não é mais que um registro dos ensaios de minha vida", disse Montaigne nos Ensaios. As coisas que escrevo aqui devem ser lidas nesse mesmo espírito. Considero  válido esse registro de impressões momentâneas, temperadas por meu entusiasmo e, agora, por uma certa melancolia, pois já se vão uns 7 meses desde minha volta.  
A verdade é que cheguei na "América" com o medo que acompanha a chegada de todos os latinos que cruzam a fronteira e a euforia de uma criança quando ganha um brinquedo novo. Provei o que pude e lamento não ter dado mais largas às minhas tentações. A parte mais rica e grata da minha visita foi não descobrir a América real; a América que existe ficou desconhecida. A América que conheci é alguma coisa como um estado de espírito coberto por bares com balcões de madeira e bancos estofados, por deliciosas tap beers e hamburgers (sim, os de lá são bem melhores que qualquer coisa que conheci no Brasil). Sendo mais preciso, quero dizer que um país não é o tipo de coisa que se conhece. É o tipo de coisa que se vivencia, uma fusão entre o mundo da nossa alma e dos nossos desejos e um mundo real, que não é exatamente real, pois não posso dizer que há aqui alguma mais coisa concreta do que uma vívida projeção. A vida às vezes se parece com ser passageiro de um ônibus que mostra paisagens novas e sonhos lúcidos....às vezes mais paisagens, outras vezes mais ação chata e lucidez. E eu embarquei num sonho com amigos queridos que ficarão para sempre comigo (Jônadas, Mitieli e Eduardo).

Eficiência e racionalidade: a outra face da América, que não é sonho, é um monumento à racionalidade, praticidade e organização. Imagino que o mundo ideal para um americano seja aquele em que ninguém precisará da ajuda de ninguém, em que todos serão auto-suficientes e independentes. Isso pode soar estranho para ouvidos brasileiros, acostumados com todo tipo de interdependência,  ligação, favores, contatos, mas faz um bocado de sentido. Basta ficar uns dias por lá para ver como perdemos tempo e dinheiro com coisas tolas e sem nenhuma utilidade. As máquinas para comprar refrigerantes, sucos, água e outras coisas estão por todas as partes. É possível abastecer o carro sem falar com ninguém. O sistema de pagamentos é incrivelmente eficiente. Sempre há uma forma simples de pagar e retirar dinheiro. Não há guardas ou vigias em  bibliotecas, supermercados. O atendimento não envolve  nenhum tipo de servilismo. As pessoas que atendem cumprem uma função e a fazem bem.
Todo a circulação de bens e necessidades cotidianas e do trabalho é baseado na confiança e correção das pessoas. Ninguém espera ser trapaceado ou acredita que será. Espera-se honestidade e, especialmente, se acredita e respeita as pessoas. Às vezes perguntei para vendedores se o produto x, que estava sendo vendido, era bom. Pelo menos uma três vezes me aconselharam a não comprar e quando não tinham o que procurava me orientavam a buscar noutra loja (sem tentar me vender algo similar). 
Em suma, não tive dificuldade para fazer nada daquilo que esperei fazer, em termos práticos. Acho que isso deveria acontecer em toda lugar. 

Civilidade: americanos são educados, corteses, atenciosos, especialmente quando não estão trabalhando. No trabalho, eles não são informais ou dispostos a conversar sem propósito definido.  Eles mantém a atenção focada nos seus compromissos. Deixam claro o que querem e dizem não, se for preciso. Temos uma forma vaga (eu, ao menos) de convidar pessoas, agendar encontros, trabalhar. "Aparece lá em casa", "nos falamos"(quando?) nada disso faz muito sentido entre os homens do norte, pensei. Um convite é um convite. Uma conversa é uma conversa. Um desejo é dito e uma contrariedade também.

Academia: Estive num Departamento pequeno, eram só 12 ou 14 professores. Todos eram especialistas em alguma coisa, que estudavam sem muita abertura para outros temas. Isso é uma coisa que não é muito comum entre nós. Eles estudam e escrevem sobre coisas específicas. What is your field? era a segunda ou terceira pergunta que ouvi por lá. A universidade americana é muito competitiva e descobrir um campo novo de estudos ou demonstrar alguma originalidade é essencial para a sobrevivência. Os alunos são estimulados a dar sua contribuição. Os alunos de pós-graduação (em parte por que trabalham como teaching assistents) tem uma sala no departamento (dividida com outro colega ou individual). Eles passam o dia na universidade, participam das discussões, pois estão trabalhando e apresentações e seminários são acompanhados por todos do Departamento.  A cultura do envolvimento, do trabalho e discussão aberta e cooperação é uma cultura fundamental, um requisito. A força das idéias e argumentos parece valer. Tudo é muito objetivo nas aulas e abordagens, mas não refratário à correção. As aulas frequentemente montam cenários de discussão e o professor assume que existem alternativas e que sua posição é aquela, mas que há outras e o aluno poderá conhecê-las. Mais de uma vez ouvi professores dizendo: tem essa teoria aqui, mas eu sustento essa. Há paisagens do pensamento e algumas são defendidas argumentativamente. Uma disciplina é, assim, muitas vezes, um percurso dentro de uma certa tradição de análise de um tema (em geral em torno de 5 ou 10 artigos seminais, que deram a direção do tema). Invariavelmente, o aluno que assiste uma disciplina tem um panorama da  discussão e pode localizar a si mesmo. Essa postura, bastante racional e objetiva, dá muito resultado na Universidade, eu acho. 

Isolamento linguístico: fui para os USA basicamente para aperfeiçoar meu domínio da língua. Na primeira semana eu não entendia quase nada do que me era dito. Pela primeira vez experimentei o isolamento linguístico; aprendi como a falta de comunicação aprisiona; como é difícil existir, ter um lugar no mundo, sem linguagem. E essa experiência invariavelmente me fez entender o quanto há de dependência na vida. A vida é alguma coisa que pede comunidade e perspectivas de amor, atenção, calor humano. Boa parte disso ganhamos trocando palavras. Não poder falar, ser ouvido ou entendido é como estar sem mundo, isolado, é uma forma de não-ser. E não falar nos ensina um bocado disso. 


Happiness:  o astral brasileiro diante da vida é nossa principal força (é uma força psíquica). É possível olhar, mesmo numa grande cidade, uma pessoa nervosa, carregando sua caixa de refrigerantes para vender; ver seu medo e desespero na dura batalha dos dias. Mas também é possível ver essa gravidade entrecortada por sorrisos amplos de alegria, de fé na vida e a certeza que ela pode ser leve, ainda que às vezes possa nos pedir demais. Essa felicidade não está aberta para a maioria dos americanos. A pobreza na América é vergonha.  Ser pobre para nós não é um defeito. Os pobres brasileiros, ainda que não sejam amados, não são cidadãos de segunda linha, como alguém que carrega consigo uma  chaga...ao menos entre a população comum. O pobre no Brasil é uma pessoa pobre, mas não menos que isso. Talvez essa diferença se deva à nossa humilde convicção de que a riqueza não é uma experiência de longo termo; afinal, o Brasil sempre flertou com a miséria, ela estava perto dias atrás. Nesse sentido, é sábio pensar que o pobre não é tão diferente de cada um. Ou talvez sejamos legítimos herdeiros da profecia cisplatina "Não é vergonha ser pobre; vergonha é roubar". 
O certo é que somos definitivamente um povo caloroso e feliz, mesmo em meio ao nosso sofrimento. O capitalismo tropical nos faz desejar os bens que a indústria americana cria, as vezes até matar para tê-los, numa das pontas dessa contradição que é nossa experiência. Mas definitivamente nós vivemos em paz com a falta de muita coisa e estamos prontos a abraçar irmão e irmã desprotegidos, ouvir, conversar, se apiedar e tornar seu drama menos triste, sem nenhuma rejeição ou desprezo profundo pelo seu eventual pelo fracasso pessoal. Achei os americanos bastante frios e fechados, embora eles gostem de conversar quanto estão no aeroporto ou em algum lugar sem nenhum tipo de tarefa séria. E os ricos também não parecem muito felizes. Eles são cerebrais...um pouco demais, talvez. 

Dinheiro: Tudo é pago. Ninguém espera receber nada gratuitamente. Mas o serviço é bom por toda parte. Americanos são considerados individualistas. Eles são, no sentido que estão bastante ocupados em seus projetos pessoais e conseguir sucesso profissional. Ao mesmo tempo, eles contribuem regularmente com o país, com suas comunidades, doam dinheiro para a universidade. As doações e preocupação com atividades de solidariedade são muito mais fortes e frequentes que no Brasil. As pessoas comuns planejam e atuam praticamente para minimizar o sofrimento e injustiça social. Gostam de ajudar a criar e dar oportunidades. Mas não tocam e não gostam de miseráveis, me pareceu. Nós tocamos, abraçamos, especialmente no Natal, mas fazemos, pessoalmente, pouca coisa efetiva para pôr fim à miséria. Quando um governo ameaça fazê-lo, parece para milhares que algo errado está em curso. 

O afeto: americanos são bastante reservados e parecem tensos ou, ao menos, não tão soltos e à vontade quanto nós. A neurose americana é controlada com as forças racionais da alma. A neurose brasileira é regulada com afeto. O estranho instinto de adaptação e sobrevivência num mundo hostil é lá muito  controlada pelo cérebro, sem buscar dependência, ligações, proximidades, desabafos, lamentações. Por isso, muitos americanos estouram na cabeça, tem ataques e atiram, como aconteceu em Santa Bárbara (na mesma época que estive em Davis). Brasileiros lidam com os medos da vida se abraçando na família, buscando conforto e às vezes alguma reclamação dentro de casa. Somos cheios de coração. 

Paisagens e sonhos futuros: quero voltar. Sou brasileiro. Estive em lugares lindos, com pessoas maravilhosas, mas em minha alma estava sozinho e meu coração estava sempre triste, esperando o calor que encontro nos braços de meus filhos e na bagunça da minha casa. Nada aqui foi vulgar ou triste, nada foi regular, como os outros dias da minha vida, mas um pedaço de mim estava faltando. Encontrei essa parte que faltava na volta. Aprendi que podemos ir muito longe, mas só existimos verdadeiramente no amor.