quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008


A cena acima é quase o desfecho de American Gangster, em cartaz no cine Santa Cruz. Gostaria de usar esse filme para ilustrar umas coisas que andei pensando sobre o cinema nacional.

Já ouvi muita conversa sobre a proteção do cinema nacional contra a invasão do lixo americano.

Com raras e boas exceções, considero essas conversas quase sempre resmungo de diretorzinho fraco, de realizadores cujo grande feito foi representar na tela um pouco de pedanteria do tipo "eu queria mostrar tal coisa...criar tal efeito", quando o resultado é, quase sempre, pobreza visual, um roteiro cheio de furos e o desprezo pelo papel social e de edificação do cinema. Não é demais lembrar que bons filmes brasileiros criam sua própria bilheteria e chamam a atenção das grandes redes de cinema. Os últimos filmes do Jorge Furtado podem ser uma representação dessa tese.


Para mim, não resta dúvida que há muitas virtudes em Hollywood, virtudes desprezadas por muitos "defensores" da indústria cinematográfica nacional. As películas que concorreram ao Oscar nos últimos anos são, no geral, filmes que não querem apenas agradar o espectador médio, que gosta de consumir enlatados, não são histórias cheias de clichês, sem nenhuma autoridade ou peso cultural, como esbravejam os critícos anti-americanos. Embora na economia e na política o exemplo americano seja, não raro, catastrófico, a América dos cinemas faz muito bem ao mundo. Woddy Allen, por exemplo, não se encaixa em nada do que dizem os detratores do império do mal.


Uma das coisas que diretores americanos fazem bem são filmes ou thrillers de ação. Quem conhece um pouco de cinema sabe que não é nada fácil sustentar uma trama com ritmo, boas locações e atuações fortes. Outra coisa: o poder econômico dos estúdios americanos não foi construído apostando na indústria nacional, no dinheiro estatal. Eles buscaram empresas, fizeram da arte um negócio, um comércio que vendeu muitas pérolas e muitos porcos. Como ocorre nas universidades, eles essencialmente valorizam o talento, atraem gente boa (como aconteceu com Meirelles, Valter Salles e o diretor mexicano de Babel e 21 gramas). Além disso, cineastas americanos descobriram muito cedo uma coisa que temos enorme dificuldade de fazer: contar uma boa história através de imagens.
Alguém poderia dizer que as coisas não são bem assim, que cada uma dessas qualidades vem acompanhada de uma série de defeitos, etc. Tudo bem, eu digo, mas isso não depõe contra uma América eficiente e boa que, cedo ou tarde, se quisermos sobreviver, teremos de aprender a enxergar.




sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Piaf


Assistir Piaf me fez lembrar o quanto a dor pode ser bela. Toda grande biografia é uma lição tocante, um alento no registro insípido em que a vida geralmente passa. Piaf certamente não teve uma vida comum, ela guardava em si a força de uma natureza triste, terna e dilacerada. Uma artista que ensina muito para nossa época tomada de insensibilidade e vagueza, uma época de gente doente, que não vive o amor, que não conhece revolta, nem ânsia. “Non, Je ne regrette rien”. “Não, eu não me arrependo de nada”. Essa letra é minha vida, ela diz. E eu e tu não nos arrependemos de nada?
A vida por aqui transcorre como um passeio vago, com um ou outro sobressalto e tudo o mais não é significativo...sintoma de uma febre lenta, de uma morte que se distribui um pouco a cada momento. Não vivemos, pois que a vida sempre fica um pouco para trás. Nada estoura nossos nervos, nenhum vício medonho nos alicia! Nossos lábios não pedem. Engolimos muita coisa e quando aceitamos algum chamado, o fazemos com vergonha, pois o alinhamento tornou-se mais forte que toda grande tarefa. Nenhum homem de hoje se levanta. A incrível história dos homens quietos e calados.
Vejam um retrato do Brasil recente: a governadora audaciosa quer equilibrar as contas do Estado, o Rubinho aceita qualquer coisa em troca de um bom salário, a seleção que convoca os melhores atletas do Brasil.... patrocinados pela Nike, a arte, a filosofia, a literatura nem sabe se existe. Ainda que seja necessário, um grande homem não deseja passar seus dias fazendo contas, ele deseja ver o mundo crescer em dom, em virtude . Até o estúpido Chaves me anima mais que esse retrato parado!
Hoje não existe verdade maior que o homem, não há mais heroísmo de pessoas que abandonam tudo. Apatia e simpatia, a sintaxe do nosso tempo. A vida de Edith Piaf ilustra a lógica triste da nossa submissão. Quando vemos a Bolívia analfabeta e pobre se sacudindo, estranhamos que no vizinho gigante toda tragédia termine sempre no silêncio. Uma democracia calada...essa é nossa história. Ninguém clama por nada. As mortes a paulada, os faconaços aqui por perto, a miséria, a crueldade, nada disso nos toca, nem comove. E não era justamente esse estoicismo canhestro que retratava o mundo desprovido de força, desprovido de vida, do campo de extermínio? Primo Levi: “Foram justamente as privações, as pancadas, o frio, a sede que, durante a viagem e depois dela, nos impediram de mergulhar no vazio de um desespero sem fim. Foi isso. Não a vontade de viver, nem uma resignação consciente: dela poucos homens são capazes, e nós éramos apenas exemplares comuns da espécie humana”.

Nacionalismo





Sou um nacionalista inveterado, desses que se emociona ao ver a bandeira brasileira, um pano que raramente encontramos pendurado pelos cantos do Brasil. A desgraça é que quase todo nacionalista aparece montado numa ladainha conservadora de “Deus, Pátria e Família”, cheios de pensamento da idade da pedra. Quando os encontro, na internet, nos jornais, ao vivo, sempre me lembro de uma tirada genial do nosso Barão de Itararé contra os integralistas de Plínio Salgado.Ele dizia que quase entrou para as hostes dos “camisas verdes”, quando ouviu um deles gritando “Deus, Pátria e Família”, pois havia entendido: “Adeus pátria e família”.
Meu vínculo com o nacionalismo é, essencialmente, derivado da preocupação com a formação de uma cultura da emulação do brasileiro exemplar, um tipo de herói nacional que não é um homem de palha, sem estofo e oportunista. O humorista gaúcho Aparicio Torelly foi um grande brasileiro, mas duvido que três por cento da população brasileira tenha ouvido falar dele. Tudo o que fazemos com os bons exemplos é relegá-los ao esquecimento ou à indiferença. Está claro para mim que o futuro do Brasil depende de um alimento muito mais forte do que a ajuda de Deus ou do mito do atleta que era pobre e enriqueceu. Aproveito o post de hoje para apresentar um desses bons exemplos, na esperança que possamos algum dia cultivá-los melhor.
Seu nome é Roberto. Tem um forte sotaque americano, herdado dos anos vividos em exílio com a família de seu avô, o ex-governador da Bahia Octávio Mangabeira. Desde sua infância revelou enorme inteligência e, aos dez anos, com a morte de seu pai, o advogado americano Arthur Unger, retornou ao Brasil.
Depois de completar sua formação superior no Rio de Janeiro voltou a estudar no exterior. Destacou-se entre seus colegas e o brilhantismo valeu-lhe o cargo de professor, aos 22 anos, na prestigiada Universidade de Harvard. Em Harvard, Roberto Mangabeira Unger lecionou por 30 anos. Não foi mais um professor, mas um dos autores mais originais nas áreas da teoria social e do pensamento filosófico e jurídico. É, incrivelmente, um dos poucos intelectuais brasileiros que é mais conhecido fora do país do que aqui dentro.
Mesmo no exterior, sempre ocupou-se do futuro do Brasil e quando tornou-se ministro do governo Lula, os telejornais fizeram pouco mais do que chamar atenção para o “carregado sotaque americano” do professor e repetiram, bastas vezes, uma declaração hostil que havia dado sobre esse mesmo governo que passara a integrar. Nada a respeito de sua história de brilho intelectual, nada sobre sua contribuição para o pensamento político, social, e o civismo foi retratado. Apesar de ser um exemplo de competência, brilho, a imprensa só conseguiu lembrar que “estamos diante de um ministro que mal fala português”.
Mangabeira não desperta muitas paixões, é um homem bastante sóbrio e racional, às vezes possesso, mas é uma boa peça para rebater a ingrata mania de doar prestígio público ao personagem da telenovela, ao cantor estúpido, ao atleta truculento que rouba nossa dignidade todo dia. Esse mesmo ministro esteve no RS para apresentar propostas para um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil, tendo o Rio Grande como “laboratório de políticas nacionais”. Indagado acerca da escolha do RS para iniciar seu trabalho, ele disse: “o Estado ostenta historicamente muitos dos traços do tipo de organização social e econômica que desejamos para o Brasil. Acalentou grande desconcentração de propriedades, uma economia que é marcada pela difusão. Ao mesmo tempo, o Rio Grande do Sul sustentou a cultura cívica mais avançada do país”. Não sei o que o resto do Brasil pensa, é hoje um feito incomum e louvável lembrar a importância da cultura cívica como uma base para um modelo de desenvolvimento nacional.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Rua dos Cataventos




Eu nada entendo da questão social.

Eu faço parte dela, simplesmente....

E sei apenas do meu próprio mal,

Que não é bem o mal de toda a gente,

Nem é deste Planeta....Por sinal

Que o mundo se lhe mostra indiferente!

E o meu anjo da Guarda, ele somente,

É que lê os meus versos afinal....

E enquanto o mundo em torno se esbarronda,

Vivo regendo estranhas contradanças

No meu vago País de Trebizonda.....


Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,

É lá que eu canto, numa eterna ronda,

Nossos comuns desejos e esperanças!....


Do livro Antologia Poética, editado pela L&PM

Porque deixei de falar sozinho


Por que deixei de falar sozinho

"Eu tinha o hábito de falar sozinho. Aprazia-me conversar comigo mesmo e, por isso, ficava horas a fio, trocando idéias com meus botões.
Nessa época eu era um homem que me compreendia perfeitamente. Empregava nas minhas autopalestra uma linguagem acessível e tinha o cuidado de não usar termos empolados, não só para não me tornar ridículo diante de mim mesmo, mas também para me poupar o trabalho de ir consultar o dicionário.
Às vezes, fazia-me perguntas desconcertantes como esta:
Por que será que há tanta gente idiota neste mundo?
E, como não sabia responder à minha própria interrogação, limitava-me a sorrir idiotamente.
Em outras ocasiões, sustentava discussões comigo mesmo, mantendo, porém sempre uma fraseologia elevada, como convém a uma pessoa de fino trato e esmeraa educação. Isso acontecia sempre que comprava um bilhete de loteria ou que tomava um bonde errado. Mas tudo acabava bem e eu continuava a manter as melhores relações comigo mesmo.

Um dia, porém, entrei satisfeito em casa. Acabava de adquirir um terno quadriculado e um parte de sapatos de jacaré, esperando obter, por essa forma, um formidável êxito social. Contemplei-me durante alguns segundos no espelho e não sei como deixei escapar a seguinte exclamação:

- Mas que cara cretino!

Ao ouvir esse insulto, atirado às minhas bochechas, senti subir-me o sangue às faces e retruquei com violência:

- Cretino é você, seu malcriado!

Foi a conta. A paciência humana, como a república portuguesa, também tem os seus limites. E os homens educados conseguem manter uma linha impecável, enquanto não lhes pisam os calos.

Dos desaforos em baixo calão, passei às vias-de-fato, agredindo-me e rasgando a roupa nova que ficou em petição de miséria. Não satisfeito, arranquei os sapatos e depois arremesei, com toda a força, os jacarés contra a minha imagem no espelho que se desfez em estilhaços.

Serenados os ânimos, verifiquei que eu estava com toda a razão. Inspirado por um natural sentimento de nobreza, próprio de um verdadeiro cavalheiro, estava, entretanto, disposto a me perdoar daquele insulto. Mas, ao mesmo tempo, não me ficava bem continuar a manter relações com um sujeito que me havia ofendido tão torpemente.

E, então, resolvi cortar todas as ligações de amizade que me dispensava e deixei automaticamente de falar comigo.

No fundo, não me desgosto e chego até a reconhecer que não sou, afinal, tão ruim como dizem os meus desafetos. Mas nâo quero saber mais de conversa comigo mesmo.

E isso agora já é uma questão de amor-próprio".

Aparício Torelly, O Barão de Itararé. Extraído do livro Barão de Itararé: meio século de humorismo de Sérgio Dillenburg. Edunisc. 2005.