sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

As lições de amor das crianças



Estava lendo o artigo "A invenção da criança da psicanálise" de Diana Corso, que registra, entre outras coisas, o percurso freudiano de abordagem da sexualidade infantil, da criança como ser desejante e outros processos constitutivos da infância. Fui lê-lo pois queria saber se, afinal de contas, Freud é, como já ouvi dizer, o "descobridor da maldade infantil". Sim, me disseram mais de uma vez que é um erro pensar que as crianças "são anjos bonzinhos"; "crianças são más, são sádicas" e Freud, o pai da Psicanálise, o teria mostrado. O artigo ajudou a perceber que a conversa é um pouco mais complicada. Essa parece ser mais uma daquelas questões que não admitem uma resposta do tipo sim ou não. Deixo a questão em aberto, lembrando que crianças podem ser boas. Infinitamente boas. Boas de um jeito que comove o coração de adultos. E é sobre essas lições possíveis de bondade inocente que desejo falar. A história é parte de minhas conversas sobre mortalidade e parentesco com meu filho mais jovem, o Francisco. A primeira experiência de generosidade que tive com ele aconteceu quando falamos sobre a morte de meu pai. A morte, a perda de alguém que amamos é talvez, de todas, a experiência mais difícil que podemos ter. É difícil explicá-la. Eu mesmo a descobri lá pelos 6 ou 7 anos quando um filhotinho de uma coelha que criávamos morreu. Era um filhote pequenininho, fofinho, de uns 10 dias, que já caminhava, mas teve uma febre e morreu, assim como seus outros 10 ou 11 irmãos. Passei várias horas acariciando ele, sem entender direito o que havia acontecido. Minha mãe, quando descobriu o que eu estava fazendo, resolveu tudo de um jeito simples: deu um tapa na minha mão e disse: "ele tá morto, não tá vendo". E me mandou enterrá-lo ou jogou-o fora. Um pouco assustado, entendi que morrer acontece e não há muito a ser feito a não ser aceitar (e especular sobre o pós-morte).
Perdi meu pai há alguns anos. De um tempo para cá, F. notou que visitamos minha mãe, identificada by description como "a vovó da vaquinha", mas não meu pai. Um dia, voltando da escolinha, ele me perguntou: "quem é seu pai?" Contei para ele que meu pai, o vovô Santo, havia morrido num acidente de carro e estava enterrado num cemitério. Ele pareceu entender que meu pai tinha caído, estava machucado e dormindo, mas depois iria acordar. Ele viu que eu falava com tristeza do assunto e então comentou, de um jeito que me fez chorar, "Ah não se preocupe papai, ele vai melhorar". Como queria que ele soubesse que a morte, assim como algumas doenças, é final e incontornável, falei para ele: "não, ele morreu; quando as pessoas morrem, elas não melhoram mais. Elas ficam como aquele sapo que vimos na estrada" (estava fazendo referência ao cadáver de um sapo esmagado que encontramos num passeio de bicicleta). Ele ficou em silêncio e não disse mais nada. Um tempo depois, assistindo o Bolt, o super-cão, vi ele dizer preocupado: "viu, aquela menina não pode ficar correndo no meio dos carros. Ela vai ser esmagada e morrer". Talvez eu tenha exagerado na imagem do sapo, mas queria que ele soubesse que morte é uma coisa séria, que devemos evitar e que, quando acontece, não tem volta.
A ausência do meu pai também fez o Francisco perceber que há algo diferente com a família do Bruno, seu irmão por parte de pai. Sempre que vamos visitar o Bruno, encontramos ele e a mãe, mas nunca o pai dele (que sou eu). Como F. tem pai e mãe, ele esperava encontrar o pai e a mãe do Bruno na casa dele. Esses dias, reconhecendo a diferença, ele me perguntou: "quem é o pai do Bruno?" Esse parece ser um erro simples, mas, assim como ele tentou me consolar quando contei a história da morte de meu pai, essa história também me deixou comovido. Francisco e Bruno são dois irmãos que se amam profundamente. É uma preocupação, especialmente para pais separados, saber como o irmão mais velho receberá o irmão mais novo. Até onde me lembro, eles se gostaram desde sempre (como mostra a foto acima); e testemunhar amor e carinho entre irmãos talvez seja a maior alegria da vida de um pai. Quando me exalto e grito com o Bruno, o Francisco diz: "papai, não fála assim com o mano". Conheço poucos adultos que seriam capazes de reconhecer que um irmão pode ser filho de outros pais, sem deixar de vê-lo como irmão. É preciso um tanto de bondade e muita inocência para ver outra pessoa como um objeto de amor, apenas, e cuidá-lo e defendê-lo.
Nosso mundo tem sido dominado pela violência e sofrimento. Há dor por todos os lados, todos os dias. Dor que destrói. É difícil ser feito apenas de amor. Mas as crianças são, muitas vezes, apenas amor. E por serem amor, elas ensinam, mesmo sem saber muitas coisas.