quinta-feira, 29 de maio de 2008

dia desses recebo a visita de uma pregadora de não sei qual religião. Chegou perguntando se eu tinha medo do futuro, das catástrofes que podem assolar a terra...conversa vai, conversa vem, passou a me contar que os problemas políticos, a corrupção, caos na saúde, insegurança, tudo isso vai deixar de existir...por que Deus vai governar a terra...éhh!!, Deus.
Perguntei: - como a senhora sabe? "tá qui, óh, no livro de Daniel".
Eu: - sim, entendo, mas não significa que vai acontecer. Tem muitas coisas que são escritas e não acontecem.
Ela: Não, mas o Sr. sabe que a Bíblia é um livro inspirado por Deus, que tudo o que diz aqui realmente acontece.
Eu: Tenho minhas dúvidas, Senhora.
Ela: Não, mas é, pode ter certeza.
Reluto em aceitar qualquer livro ou autoridade mais sagrada que as verdades que emanam do meu peito e da minha racionalidade. Essa pequena conversa me fez pensar nas razões e nas causas do fanatismo. Eu encontro cada dia mais gente cega pela "palavra de Deus". Não sei exatamente o que acontece, mas parece que a devoção extremada provoca um tipo particular de anestesia no cérebro...os fanáticos abandonam inteiramente o apreço pelo racionalidade.
Lembrei, de cara, de uma passagem do Emerson em Auto-Confiança:
"Nada, enfim, é sagrado, a não ser a integridade de nossa
própria mente. Absolvei-vos a vós mesmos e haveis de ter o sufrágio do mundo.
Lembro-me de uma resposta que, quando bastante jovem, estava pronto para dar a
um ilustre conselheiro, que estava habituado a importunar-me com as velhas
doutrinas da igreja. Indaguei: "O que eu tenho a ver com a sacralidade das
tradições, se vivo inteiramente de uma vida interior?" "mas esses impulsos"-
sugeriu meu amigo- "podem provir de baixo, não de cima". "não me parecem ser
assim- repliquei-; "mas se sou filho do Diabo, viverei então do Diabo." (p. 40,
da edição brasileira dos Ensaios, primeira série).

Mais tarde também acabei encontrando o ensaio do Hume (foto), um filósofo muito apreciado aqui em casa, entre outras coisas, por ser um fino psicólogo e por nunca ter deixado de denunciar o zelo fanático e a falsa religião.
Da Superstição e do Entusiasmo David Hume, Ensaios Morais e Políticos, 1741. Tradução de Eliana Curado.
Que a corrupção do melhor gera o pior tornou-se uma máxima comumente
demonstrada, entre outros exemplos, pelos efeitos perniciosos da superstição e
do entusiasmo, as corrupções da religião verdadeira. Estas duas espécies de
falsa religião, apesar de serem ambas perniciosas, são bastante distintas e
mesmo de natureza contrária. A mente humana está sujeita a certos temores e
apreensões inumeráveis, procedentes ou de uma situação infeliz em assuntos
públicos e privados, ou de problemas de saúde, ou de uma disposição sombria e
melancólica, ou do concurso de todas essas circunstâncias. Em tal estado de
espírito a mente é tomada por uma infinidade de males e temores desconhecidos,
derivados de agentes desconhecidos. Quando os objetos reais de temor são
escassos, a alma, ativa em prejuízo próprio e alimentando sua inclinação
predominante, cria objetos imaginários, para cujo poder e malevolência não
encontra limites. Como estes inimigos são inteiramente invisíveis e
desconhecidos, os métodos empregados para apaziguá-los são igualmente
incompreensíveis e consistem em cerimônias, observâncias, mortificações,
sacrifícios, presentes, ou em qualquer prática, ainda que absurda ou frívola, em
que o desatino ou a malícia recomenda uma credulidade cega e amedrontada. A
fraqueza, o medo, a melancolia, juntamente com a ignorância, são, pois, as
verdadeiras fontes da superstição. Mas a mente humana sujeita-se também a uma
incompreensível exaltação e presunção, oriunda da prosperidade, da saúde
luxuriante, de espíritos fortes, ou de uma disposição ousada e confiante. Neste
estado de espírito, a imaginação se inflama com concepções grandiosas, mas
confusas, às quais nenhuma beleza sublunar ou alegrias podem corresponder. Tudo
que é mortal e perecível desaparece, como pouco digno de atenção. Segue-se uma
série completa de fantasias de regiões invisíveis ou do mundo dos espíritos,
onde a alma é livre para satisfazer-se com tudo que imagina, e que possa melhor
se adequar ao gosto e à disposição atual. Assim, eleva-se em êxtase, transportes
e vôos surpreendentes de fantasia. A confiança e a presunção aumentam estes
arrebatamentos incompreensíveis, que parecem estar além do alcance de nossas
faculdades ordinárias e são atribuídos à inspiração imediata do Ser Divino,
objeto de devoção. Em pouco tempo, a pessoa inspirada chega a considerar-se um
favorito ilustre da Divindade e, quando tomada por este frenesi, o ápice do
entusiasmo, todo capricho é consagrado: a razão humana, e mesmo a moralidade,
são rejeitadas como guias falaciosos. A loucura fanática se entrega, cegamente e
sem reserva, ao suposto arrebatamento do espírito e à inspiração derivada do
mundo superior. A esperança, o orgulho, a presunção. Estas duas espécies de
falsa religião podem dar ensejo a muitas especulações, mas eu devo me
restringir, no momento, a poucas reflexões concernentes à sua influência
distinta no governo e na sociedade.
Ver o restante da tradução em:
ttp://www.filedu.com/dhumedasupersticaoedoentusiasmo.html
depois das declarações de amor pela filosofia do Ferst, me pareceu adequado colocar algo mais edificante aqui. Vai, então, um texto do César Schirmer sobre caminhada como exercício filosófico. Encontrei no Simplicíssimo. O César é dono dos pés acima. A foto chama-se "nadeando em Santa Cruz". Como vocês já sabem, ele escreve e fotografa muito bem.


A caminhada como exercício filosófico: o caso do Caminho de Santiago

*César Schirmer dos Santos


Para Davi Daniel Teixeira, meu encaminhado amigo.


Ao menos desde o advento da escola peripatética a prática da caminhada esteve associada ao exercício filosófico. Os historiadores nos dizem que Aristóteles costumava debater filosofia enquanto caminhava acompanhado dos seus discípulos. Talvez a prática seja ainda mais antiga, pois há testemunho que aquele que é considerado o primeiro filósofo ocidental, Tales de Mileto, certa vez caiu em um buraco enquanto caminhava observando as estrelas. Na ocasião uma jovem escrava não pôde deixar de rir do sábio, que enquanto tentava ver tão longe perdia de vista o que estava tão perto.
Atualmente os filósofos e teóricos em geral não caminham enquanto trabalham, a não ser, por exemplo, quando estão aparecendo em um especial da BBC. A filosofia atual é, em grande parte, obra de pessoas sentadas diante de computadores. Isto não deve nos levar a pensar, todavia, que o caminhar seja totalmente alheio ao filosofar. Na falta de exemplos sobre filósofos atuais, nos ocuparemos deste assunto a partir do belo trabalho etnográfico de Sean Slavin, em Walking as Spiritual Practice, sobre os peregrinos do Caminho de Santiago.
Certamente a peregrinação é um fenômeno muito distinto do ato de filosofar enquanto se caminha. É costumeiro que peregrinos em geral sejam fiéis ou devotos que buscam algum benefício material, prática esta que sem dúvida podemos caracterizar como uma forma de materialismo religioso. Mas neste ponto os peregrinos especificamente enfocados por Sean Slavin são vantajosos ao nosso estudo, pois não são nem devotos procurando a ajuda divina para alguma vantagem material, nem turistas que pretendem apenas admirar a paisagem ou tirar fotos ao estilo eu-estive-aqui. Seus peregrinos são ateus, agnósticos, não-seguidores do catolicismo ou de alguma outra religião específica, pessoas que simplesmente percorrem o caminho e, ainda que involuntariamente, encaminham-se.
Há ainda uma diferença entre as curtas caminhadas dos filósofos da Grécia e da BBC e a prática realizada pelos peregrinos de Sean Slavin. Enquanto os primeiros caminhantes já são praticantes da filosofia, os últimos são pessoas em geral que, voluntariamente ou não, chegam às práticas filosóficas a partir de práticas corpóreas. É o aspecto de introdução à prática do filosofar que enfocaremos nestes peregrinos.
Iniciemos por dar um ar de plausibilidade à nossa sugestão da caminhada como introdução ao filosofar e prática filosófica. Certamente há quem considere tal sugestão implausível, pois as pessoas intelectualizadas com as quais convivemos costumam permanecer sentadas nas suas mesas de trabalho durante o dia, e em assentos de cinema, poltronas em casa ou mesas de bares durante a noite. Além disso, os filósofos modernos são geralmente pessoas que permanecem sentadas, e isto influencia até mesmo seus textos, como em Descartes:
"... por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos..." [1]
Além do estereótipo do intelectual como pessoa sentada, ainda é comum que se considere as pessoas ativas como desmioladas, embora não haja nenhum motivo para relacionar-se uma coisa à outra. Mas ainda veremos tais coisas mudarem, e os sentados serem questionados em relação à manutenção da sua saúde mental.
Voltando ao nosso assunto, aparentemente alguns filósofos gregos praticavam filosofia caminhando, e Nietzsche alude aos pensamentos que surgem enquanto se caminha. Talvez a relação entre caminhar e pensar também possa ser estabelecida a partir das noções de ritmo e velocidade:
"Gosto de caminhar porque é lento, e suspeito que a mente, como os pés, trabalha a cerca de 3 milhas por hora." [2]
Enfim, a relação entre a prática do filosofar e o permanecer parado nos parece arbitrária, e parasitária do costume moderno de colocar a filosofia em letras ao invés dos sons da voz, ou mesmo da reflexão concomitante a uma prática lenta, aeróbica e ritmada como a caminhada.
Atualmente o Caminho de Santiago é percorrido de diversas maneiras, como por exemplo de carro, a cavalo, de bicicleta e à pé. Aqueles que o percorrem de carro não são considerados peregrinos nem mesmo pelas autoridades eclesiásticas. Os que o percorrem de cavalo são uma minoria. Dos considerados peregrinos, cerca de 30% fazem o percurso de bicicleta, cerca de 70% o fazem a pé, e aqui Sean Slavin percebe uma demarcação social, pois os peregrinos pedestres não consideram os ciclistas como peregrinos, visto que, pare eles, é muito difícil permanecer em um estado meditativo quando se está a 40 km/h. [3] Assim emerge algo importante para nós, pois os peregrinos pedestres alcançam um estado mental filosófico, a meditação, através da prática corpórea da caminhada.
E o que é a meditação? No seu trabalho etnográfico, Sean Slavin atribui aos peregrinos dois tipos de estados mentais: o retorno aos sentidos, ao aqui-e-agora do que de fato há para se ver, se ouvir e se cheirar, e a interiorização de cada um em si mesmo. Um estado não impede o outro, ao contrário. Ao fixar-se no mero percorrer, sem preocupar-se com o chegar, o peregrino percebe-se a si mesmo enquanto está a sentir o que há para sentir no momento. [4] Esta interiorização do peregrino em si mesmo muitas vezes é involuntária, e mesmo adversa às crenças anteriores do mesmo, como por exemplo neste relato:
"No começo eu só estava pensando em chegar ou em Santiago ou ao próximo monumento turístico. Então comecei a encontrar diferentes temas e idéias espirituais emergindo. Você começa a andar e, à medida que você o faz, você olha para dentro de si mesmo ... Você faz isto e percebe que o Caminho está lhe ensinando coisas espirituais. Só quando você toma um dia de cada vez você percebe isto. Mas também vi que muitas pessoas quiseram experimentar crença e contato com o espiritual. Eu queria distância disto. Não sou religioso e suspeitava de pessoas que eram." [5]
O peregrino narra uma série de mudanças em si mesmo -- relativas à distinçãoentre interior e exterior -- que experimentou ao longo dos dias em que percorreu o Caminho. No começo ele foca em coisas à frente no espaço e no tempo, como o fim da jornada, ou o próximo ponto turístico. Após algum tempo ele muda o foco das coisas exteriores e materiais às coisas interiores e espirituais. Ele passa de coisas exteriores significantes, como os monumentos, às coisas interiores significantes, e atribui esta mudança ao caminho. Também passa de algo histórico, o monumento, a algo puramente vivido, parte da história mas a-histórico, a própria experiência espiritual. [6]
Esta mudança é narrada pelo peregrino através da metáfora da emergência, do vir-à-tona de algo que estava ali, porém submerso. Isto que estava ali, o que emerge não é algo da passagem, mas o próprio eu do peregrino. Para o peregrino, o Caminho esta a revelá-lo para si mesmo. [7]
Esta auto-revelação é narrada através da metáfora da visão. O peregrino descobre-se a si mesmo porque o Caminho o faz "olhar" para dentro de si a partir de um ponto de vista privilegiado. Neste momento o peregrino é, ao mesmo tempo, observante e observado, e isto é o que o Caminho lhe ensina, a ver-se a si mesmo de um ponto de vista melhor, em relação àquele que ele tinha previamente. [8]
É digno de nota que o Caminho é fonte exterior de autoconhecimento, [9] e nisto há uma importante diferença entre a prática de autoconhecimento do peregrino e a prática de autoconhecimento de Descartes, por exemplo, onde cada um deve chegar a conhecer-se melhor a si mesmo a partir apenas de si mesmo, duvidando de todo o resto. Certamente o peregrino está a refletir, assim como o cartesiano reflete, porém ele, o peregrino, chega ao autoconhecimento de maneira heterônoma, contra a própria vontade, ao contrário do filósofo cartesiano, que inicia seu percurso filosófico-espiritual pela decisão autônoma [10] de seguir um método ou caminho:
"Mas não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade de me haver encontrado, desde a juventude, em certos caminhos, que me conduziram a considerações e máximas, de que formei um método, pelo qual me parece que eu tenha meio de aumentar gradualmente meu conhecimento, e de alçá-lo, pouco a pouco, ao mais alto ponto, a que a mediocridade de meu espírito e a curta duração de minha vida lhe permitam atingir." [11]
No relato do peregrino, ao permitir este autoconhecimento, isto é, a passagem do exterior ao interior, o Caminho de certa forma sai da ordem espacial dos monumentos e do ponto final da jornada, a cidade de Santiago, para reconhecer-se apenas na ordem temporal, pois o autoconhecimento advém de percorrê-lo um dia de cada vez. [12] Nisto a peregrinação é semelhante ao processo de autoconhecimento filosófico cartesiano, onde se passa, de maneira ascensional, de uma meditação a outra, chegando-se assim ao conhecimento de si e também à reforma do conhecimento da exterioridade. [13]
Para o peregrino do relato, a espiritualidade está no demorar-se percorrendo o Caminho, não no desejo vulgar de peregrinos que pretendem ter experiências espirituais. Estes parecem querer encontrar esta experiência no espaço, como que no terreno do Caminho -- se comportam como Pac Mans, devoradores de pontos espirituais --, sem entender que a experiência espiritual é a própria peregrinação, na sua dinâmica. [14]
No caso específico do Caminho de Santiago, os peregrinos exploram a polissemia do termo espanhol camino, presente na tradução do mesmo para o português, caminho. Seguir um caminho é ter uma rota, ir deliberadamente de um ponto de partida a um ponto de chegada. Mas seguir um caminho é, também, fazer as coisas do nosso jeito, como quando dizemos "segue teu caminho", ou mesmo, o que nos é mais relevante, ter conhecimento do procedimento adequado na vida, como quando dizemos que uma pessoa está encaminhada ou desencaminhada.
No caso do peregrino mencionado anteriormente, o Caminho o encaminha às coisas espirituais que ele mesmo não procurou. De certa forma, o Caminho o tira da atitude desencaminhada, do peregrino que procura apenas o próximo monumento, à atitude encaminhada, do peregrino que demora-se a seguir lenta e ritmadamente em frente. Seguir em frente é, simplesmente, caminhar. [15] Nesta caminhada, o Caminho o encaminha.
Para o peregrino que encaminha-se, percorrendo o Caminho, a exterioridade do espaço e tempo locais não são determinantes para que ele se desencaminhe. O Caminho é simbólico, a chegada a Santiago não tira o peregrino do Caminho, embora ele não esteja mais percorrendo-o com seu corpo. Uma vez tendo percorrido o Caminho, estando encaminhado, o peregrino segue adiante com sua vida.
--Referências--
Civita, Victor. (ed.). Descartes. Coleção "Os Pensadores", trad. Jacó Guinsburg & Bento Prado Jr., 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Descartes, René. 1637. Discurso do método. Em: Victor Civita, Descartes.
_____. 1647. Meditações. Em: Victor Civita, Descartes.
Guenancia, Pierre. 1998. L’intelligence du sensible: essai sur le dualismecartésien. Mesnil-sur-l’Estrée: Gallimard.
Slavin, Sean. 2003. Walking as Spiritual Practice: the Pilgrinage to Santiago de Compostela. Body & society 9(3):1-18.
Solnit, Rebecca. 2000. Wanderlust: a history of walking. New York: Penguin.
--Notas--
* Versão final, escrita em 14 de novembro de 2003. Agradeço ao Rogério P. Severo pelos comentários à versão anterior. Aos demais membros do grupo Dadaseyn, à minha namorada, Mariana Balen Fernandes, e à minha mãe, Lúcia Maria Schirmer dos Santos, agradeço pela leitura da versão anterior.
[1] René Descartes, Meditações, Primeira Meditação, p. 86, AT IX-1 14.
[2] Rebecca Solnit, Wanderlust, p. 10. A velocidade de 3 milhas por hora equivale a cerca de 5km/h.
[3] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 4.
[4] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 4.
[5] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 6.
[6] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 6. Ao ler este trecho, minha mãe pediu alguns esclarecimentos, pois lhe pareceu que o peregrino dirige-se para dentro de si mesmo em uma rota paralela ao Caminho, sendo seu ponto e partida os monumentos e outros elementos histórico-sociais, e seu ponto de chegada o si mesmo não-histórico. Expliquei-lhe que se trata menos de ir de uma coisa a outra, mais da ocorrência das duas coisas num único fenômeno humano. A experiência vivida por cada um de nós é um elemento social da própria história, mas o demorar-se em perceber-se, reflexivamente, tendo certa experiência sobre si mesmo, é um fenômeno de fruição, de vivência, e, tomado assim, a-histórico. É claro que, nesta separação entre os fenômenos humanos históricos e a-históricos, estamos sendo dualistas, ou seja, supomos a distinção entre a mente e a matéria. Um exemplo grosseiro do que estamos a dizer é a embriaguez. Ainda que o estar embriagado seja o efeito do álcool no cérebro, a experiência da embriaguez não é nada disso. Mas podemos dar exemplos mais sutis do que estamos a dizer, e para mim não há como não citar o querido Pierre Guenancia neste momento: "Não somos dualistas quando refletimos sobre o fato que a música que nos chega aos ouvidos não ressoa, como música, nas orelhas órgãos do corpo, mas no nosso ser por completo onde, para ele apenas, ela tem a significação de música?" (L’intelligence du sensible, p. 11).
[7] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 6.
[8] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 6.
[9] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 6.
[10] "Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-ei seriamente e com liberdade em destruir em geral todas as minhas antigas opiniões" (René Descartes, Meditações, Primeira Meditação, p. 85, AT IX-1 13, nossos itálicos). Como comentou Rogério P. Severo, na nossa correspondência privada: "a meditação do peregrino é um entregar-se, a de Descartes é um pôr-se em controle".
[11] René Descartes, Discurso do método, Primeira Parte, p. 29, AT VI 2.
[12] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 6.
[13] René Descartes, Meditações.
[14] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 6.
[15] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 7.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Tábua dos imperativos categóricos da Ferstphilosophie


- "minta agora para poder sair na rua amanhã".

- "mais Platão, menos Rodin!"

FERSTPHILOSOPHIE!

a filosofia sempre andou perto da política; prestou, penso eu, grandes serviços à res publica. A novidade da última hora é que ela anda servindo de bode para a corrupção. Parece que os envolvidos no escândalo de desvio de dinheiro público no Detran nutriam profundos amores pela nossa simpática senhora! Olha só o que declarou Lair Ferst, o amigo da Yeda, sobre as conversas dele e do seu companheiro de chopinho, Ariosto Culau, em entrevista para a Zero Hora.

ZH - O senhor quer dizer que foi coincidência ter telefonado para se encontrar com o secretário justamente naquela dia?

Ferst - Foi coincidência.

ZH - Por que o senhor telefonou? Era freqüente esse contato?

Ferst - Não, fazia muito tempo que a gente não se encontrava. Ariosto ficou meu amigo quando chegou ao Estado. Nos encontramos em festas no Litoral, falávamos de questões acadêmicas, ele gosta de filosofia. Ele é do PSDB. Eu era, hoje, estou afastado. A gente teve afinidade. Nunca conversamos nada sobre questões de governo.
*****
Nada sobre governo, tráfico de influência, dinheiro, essas bobagens...só filosofia. Desculpa Seu Ferst, mas não dá prá cair nessa!
***

domingo, 25 de maio de 2008

um dos melhores lugares que conheço para aprender os preceitos da boa educação dos filhos é a Autobiografia de John Stuart Mill. Mill foi objeto de uma espécie de experimento educativo desenvolvido por seu pai James Mill em parceira com Jeremy Bentham. Os resultados de uma educação que, entre outras coisas, visava formar associações fortes de tipo salutar (associar coisas benéficas com o prazer) foram excelentes, mas também causaram grande sofrimento na alma do jovem filósofo. A excessiva racionalização e análise enfatizada na sua educação, como ele declara, enfraqueceu o poder de desenvolver os sentimentos necessários para garantir satisfação pessoal com a vida: "saber que um sentimento me tornaria feliz, caso eu o tivesse, não produzia em mim o sentimento". E numa passagem emocionante ele narra a profunda depressão que enfrentou no início da vida madura:

"Nesse estado de espírito ocorreu-me dirigir a mim mesmo a seguinte pergunta: 'suponha que todas as tuas metas na vida fossem realizadas, que todas as transformações que tu persegues nas instituições e opiniões pudessem ser efetuadas naquele instante mesmo: seria isto motivo de grande alegria e felicidade para ti?' E minha consciência, sem poder se reprimir, respondeu: 'Não!'. Meu coração então se abateu: todo o fundamento sobre o qual eu erguera a minha vida havia ruído. Toda minha felicidade consistia na permanente busca daquela meta, e esta meta já não me atraía. Como então os meios poderiam me interessar? Parecia-me que não restava mais nada por quê viver" (Autobiografia da editora Iluminuras, p. 124).
O cérebro de Mill cresceu às custas do esvaziamento do seu coração. Em boa hora foi salvo pela poesia. Uma boa educação deve enfatizar a consciência dos princípios corretos sem suprimir o sentido da paixão pela vida! Enxergar a verdade e amá-la. O difícil é encontrar a receita.

sexta-feira, 23 de maio de 2008


Em época de eleição, cabe a pergunta: Por que uma das cidades mais ricas do Estado não consegue reformar e dar pleno funcionamento para sua Casa de Artes?




"Apesar de tantas mentiras teimosas, a cada instante, em toda ocasião, a verdade vem à luz: a verdade da vida e da morte, de minha solidão e de minha ligação com o mundo, de minha liberdade e de minha servidão, da insignificância e da soberba importância de cada homem e de todos os homens. Uma vez que não logramos escapar à verdade, tentemos, pois, olhá-la de frente. Tentemos assumir nossa fundamental ambiguidade. É do conhecimento das condições autênticas de nossa vida que é preciso tirar a força de viver e razões para agir". (Simone de Beauvoir, Por uma moral da ambiguidade, p. 15).

"Há três coisas de que eu gosto e os americanos não gostam: eu, Sean Penn e jazz." Woody Allen

Queria muito ver esse filme, mas ele ainda não chegou por aqui. Enquanto espero, vou lendo algumas coisas. Vai, abaixo, duas resenhas interessantes. A primeira traça, entre outras coisas, a ligação do livro de Krakauer, adaptado para o cinema pelo Sean Penn, com os filósofos transcendentalistas americanos Ralph Waldo Emerson e Henry Thoreau.

A segunda resenha foi publicada por Marcos Nobre, professor do Departamento de Filosofia da Unicamp, na Folha.



There is plenty of sorrow to be found in “Into the Wild,” Sean Penn’s adaptation of the nonfiction bestseller by Jon Krakauer. The story begins with an unhappy family, proceeds through a series of encounters with the lonely and the lost, and ends in a senseless, premature death. But though the film’s structure may be tragic, its spirit is anything but. It is infused with an expansive, almost giddy sense of possibility, and it communicates a pure, unaffected delight in open spaces, fresh air and bright sunshine.



Some of this exuberance comes from Christopher Johnson McCandless, the young adventurer whose footloose life and gruesome fate were the subject of Mr. Krakauer’s book. As Mr. Penn understands him (and as he is portrayed, with unforced charm and brisk intelligence, by Emile Hirsch), Chris is at once a troubled, impulsive boy and a brave and dedicated spiritual pilgrim. He does not court danger but rather stumbles across it — thrillingly and then fatally — on the road to joy.
In letters to his friends, parts of which are scrawled across the screen in bright yellow capital letters, he revels in the simple beauty of the natural world. Adopting the pseudonym Alexander Supertramp, rejecting material possessions and human attachments, he proclaims himself an “aesthetic voyager.”
Mr. Penn serves as both his biographer and his traveling companion. After graduating from
Emory University in 1990, Mr. McCandless set off on a zigzagging two-year journey that took him from South Dakota to Southern California, from the Sea of Cortez to the Alaskan wilderness, where he perished, apparently from starvation, in August 1992. “Into the Wild,” which Mr. Penn wrote and directed, follows faithfully in his footsteps, and it illuminates the young man’s personality by showing us the world as he saw it.















......Hoje, a mobilidade constante e a comunicação instantânea são trivialidades do cotidiano. O desemprego é crônico, e as denominações profissionais perderam sua nitidez. Famílias se decompõem e se recompõem das mais diversas maneiras.
Um filme como "Onde os Fracos não Têm Vez", dos irmãos Coen, conta como começou esse declínio.Retoma muito do road movie 68, mas não é por acaso que não tem trilha musical e que seu peregrino é um assassino profissional. Já o título do filme de Sean Penn ("Into the Wild", "Na Natureza Selvagem") é uma resposta à canção de abertura de "Sem Destino", "Born to Be Wild" ("Nascido para Ser Selvagem"). A natureza selvagem está dentro de nós. E a trilha de Eddie Vedder tenta reatualizar a união de música e imagem dos 1960 para dizer isso. Mas seu sentido é outro.
A rebeldia não é desafio direto ao mundo estabelecido, mas busca de um "si mesmo" obscurecido pelo tumulto da vida. A rebeldia não está em mudar o mundo, mas em mudar a si mesmo contra um mundo que impõe padrões predeterminados para se levar a vida.
Como a maior dessas imposições, o trabalho é cada vez menos realização pessoal e cada vez mais um meio para "se virar" e cuidar das coisas que realmente importam. O que quer que isso signifique para cada pessoa.
É fácil dizer que essa nova idéia de rebeldia é apenas ilusão porque não altera as estruturas. Isso é certamente verdade: as pessoas são tão móveis e flexíveis quanto o capital. Mas também desconfiam de grandes transformações tanto quanto do próprio capital.
É fácil dizer que essa rebeldia é apenas expressão de um individualismo extremado. Isso também é verdade: cada qual vem antes de todo mundo. Mas se mudança vier, virá com esse novo indivíduo e não contra ele.



quarta-feira, 21 de maio de 2008

*

*




Sutileza Meta-física




Andorinhas avançando



em golpes de leve brisa.








*
*

Nosso tempo

"'Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco da consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa, e há um erro cujo ângulo não sabemos. Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espetáculo; por vezes, por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário. Todo o mundo é confuso, como vozes na noite' (Fernando Pessoa). Sinto nessas palavras o sentimento do nosso tempo, a descrição dessa época. Uma era onde os homens são um “mix” de tudo, uma série de peças quebradas, fragmentos que não se combinam numa unidade sublime. Sempre meio apartados, divididos, confusos entre um chamado e outro. Vaidade das vaidades, tudo é vaidade e aflição de espírito, diz o Eclesiastes. Somos qualquer coisa que seja um pouco mais que pura invenção. Um pouco mais...afinal fazemos coisas e as coisas acontecem. Alimentar o cachorro, aguar as plantas, corrigir um desnível na calçada, abraçar as crianças, conversar com os amigos, trabalhar.... Ações que todos nós fazemos. Mas o que nos cabe acreditar e o que deveríamos fazer?
A verdade é que dentro de nós não deveria haver lugar para o pensamento. Atrapalha, espicha as porções da alma para o lado oposto da vida. E sempre ficamos, como camisa velha, com a gola meio caída".

Escrevi esse texto tempos atrás. Hoje de manhã andei pensando no que sou. Não consigo encontrar lógica nenhuma na linha ampla dos meus interesses. Vida ilógica, não se sabe viver ou a vida sempre foi assim cheia de desorientações?

Caio Fernando

O amigo Joel me mandou essa frase. Vale reproduzir.

"O que eles deixaram foram estes três postulados: importante é a luz, mesmo quando consome; a cinza é mais digna que a matéria intacta e a salvação é apenas daqueles que aceitam a loucura escorrendo em suas veias."

Caio Fernando Abreu em "Eles"

terça-feira, 20 de maio de 2008



Recebi esse texto como sendo do Veríssimo. Não sei se é. Parece-me mitologia a luta entre marido e mulher no casamento. Alguns casamentos dão certo, ajudam a acalmar a solidão dos dias, aumentam a confiança na vida... são, enfim, boas experiências.

DESABAFOS DE UM BOM MARIDO

Luís Fernando Veríssimo



Minha esposa e eu temos o segredo pra fazer um casamento durar: duas vezes por semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida, e um bom companheirismo. Ela vai às terças-feiras, e eu às quintas. Nós também dormimos em camas separadas. A dela é em Fortaleza e a minha em São Paulo .Eu levo minha esposa a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta. Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento. 'Em algum lugar que eu não tenha ido há muito tempo!' ela disse.Então eu sugeri a cozinha. Nós sempre andamos de mãos dadas. Se eu soltar, ela vai às compras. Ela tem um liquidificador elétrico, uma torradeira elétrica, e uma máquina de fazer pão elétrica. Então ela disse: 'Nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar' Daí, comprei pra ela uma cadeira elétrica. Lembrem-se, o casamento é a causa número um para o divórcio. Estatisticamente, 100 % dos divórcios começam com o casamento.Eu me casei com a 'Sra. Certa'. Só não sabia que o primeiro nome dela era 'Sempre'. Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la. Mas tenho que admitir, a nossa última briga foi culpa minha. Ela perguntou: 'O que tem na TV?' E eu disse 'Poeira'. No começo Deus criou o mundo e descansou. Então, Ele criou o homem e descansou. Depois, criou a mulher. Desde então, nem Deus, nem o homem, nem Mundo tiveram mais descanso. 'Quando o nosso cortador de grama quebrou, minha mulher ficava sempre me dando a entender que eu deveria consertá-lo. Mas eu sempre acabava tendo outra coisa para cuidar antes: o caminhão, o carro, a pesca, sempre alguma coisa mais importante para mim Finalmente ela pensou num jeito esperto de me convencer.Certo dia, ao chegar em casa, encontrei-a sentada na grama alta, ocupada em podá-la com uma tesourinha de costura. Eu olhei em silêncio por um tempo, me emocionei bastante e depois entrei em casa. Em alguns minutos eu voltei com uma escova de dentes e lhe entreguei' - Quando você terminar de cortar a grama,' eu disse, 'você pode também varrer a calçada.' Depois disso não me lembro de mais nada. Os médicos dizem que eu voltarei a andar, mas mancarei pelo resto da vida'.'O casamento é uma relação entre duas pessoas na qual uma está sempre certa e a outra é o marido...'



A FOME INFAME

Transnacionais de alimentos lucram com aumento da fome
A fome no mundo é a nova grande fonte de lucros do grande capital financeiro e os lucros aumentam na mesma proporção que a fome. Nos últimos meses, os meses do aumento da fome, os lucros da maior empresa de sementes e de cereais aumentaram 83%. Ou seja, a fome de lucros da Cargill alimenta-se da fome de milhões de seres humanos. A análise é de Boaventura de Sousa Santos.

Boaventura de Sousa Santos

Há muito conhecido dos que estudam a questão alimentar, o escândalo finalmente estalou na opinião pública: a substituição da agricultura familiar, camponesa, orientada para a auto-suficiência alimentar e os mercados locais, pela grande agro-indústria, orientada para a monocultura de produtos de exportação (flores ou tomates), longe de resolver o problema alimentar do mundo, agravou-o.
Tendo prometido erradicar a fome do mundo no espaço de vinte anos, confrontamo-nos hoje com uma situação pior do que a que existia há quarenta anos. Cerca de um sexto da humanidade passa fome; segundo o Banco Mundial, 33 países estão à beira de uma crise alimentar grave; mesmo nos países mais desenvolvidos os bancos alimentares estão a perder as suas reservas; e voltaram as revoltas da fome que em alguns países já causaram mortes. Entretanto, a ajuda alimentar da ONU está hoje a comprar a 780 dólares a tonelada de alimentos que no passado mês de março comprava a 460 dólares.A opinião pública está a ser sistematicamente desinformada sobre esta matéria para que se não dê conta do que se está a passar. É que o que se está a passar é explosivo e pode ser resumido do seguinte modo: a fome do mundo é a nova grande fonte de lucros do grande capital financeiro e os lucros aumentam na mesma proporção que a fome.A fome no mundo não é um fenômeno novo. Ficaram famosas na Europa as revoltas da fome (com o saque dos comerciantes e a imposição da distribuição gratuita do pão) desde a Idade Média até ao século XIX. O que é novo na fome do século XXI diz respeito às suas causas e ao modo como as principais são ocultadas. A opinião pública tem sido informada que o surto da fome está ligado à escassez de produtos agrícolas, e que esta se deve às más colheitas provocadas pelo aquecimento global e às alterações climáticas; ao aumento de consumo de cereais na Índia e na China; ao aumento dos custos dos transportes devido à subida do petróleo; à crescente reserva de terra agrícola para produção dos agro-combustíveis.
Todas estas causas têm contribuído para o problema, mas não são suficientes para explicar que o preço da tonelada do arroz tenha triplicado desde o início de 2007. Estes aumentos especulativos, tal como os do preço do petróleo, resultam de o capital financeiro (bancos, fundos de pensões, fundos hedge [de alto risco e rendimento]) ter começado a investir fortemente nos mercados internacionais de produtos agrícolas depois da crise do investimento no sector imobiliário.
Em articulação com as grandes empresas que controlam o mercado de sementes e a distribuição mundial de cereais, o capital financeiro investe no mercado de futuros na expectativa de que os preços continuarão a subir, e, ao fazê-lo, reforça essa expectativa. Quanto mais altos forem os preços, mais fome haverá no mundo, maiores serão os lucros das empresas e os retornos dos investimentos financeiros.
Nos últimos meses, os meses do aumento da fome, os lucros da maior empresa de sementes e de cereais aumentaram 83%. Ou seja, a fome de lucros da Cargill alimenta-se da fome de milhões de seres humanos.
O escândalo do enriquecimento de alguns à custa da fome e subnutrição de milhões já não pode ser disfarçado com as “generosas” ajudas alimentares. Tais ajudas são uma fraude que encobre outra maior: as políticas econômicas neoliberais que há trinta anos têm vindo a forçar os países do terceiro mundo a deixar de produzir os produtos agrícolas necessários para alimentar as suas próprias populações e a concentrar-se em produtos de exportação, com os quais ganharão divisas que lhes permitirão importar produtos agrícolas... dos países mais desenvolvidos.
Quem tenha dúvidas sobre esta fraude que compare a recente “generosidade” dos EUA na ajuda alimentar com o seu consistente voto na ONU contra o direito à alimentação reconhecido por todos os outros países.
O terrorismo foi o primeiro grande aviso de que se não pode impunemente continuar a destruir ou a pilhar a riqueza de alguns países para benefício exclusivo de um pequeno grupo de países mais poderosos. A fome e a revolta que acarreta parece ser o segundo aviso. Para lhes responder eficazmente será preciso pôr termo à globalização neoliberal, tal como a conhecemos.
O capitalismo global tem de voltar a sujeitar-se a regras que não as que ele próprio estabelece para seu benefício. Deve ser exigida uma moratória imediata nas negociações sobre produtos agrícolas em curso na Organização Mundial do Comércio. Os cidadãos têm de começar a privilegiar os mercados locais, recusar nos supermercados os produtos que vêm de longe, exigir do Estado e dos municípios que criem incentivos à produção agrícola local, exigir da União Europeia e das agências nacionais para a segurança alimentar que entendam que a agricultura e a alimentação industriais não são o remédio contra a insegurança alimentar. Bem pelo contrário.

URL=http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=14976

domingo, 18 de maio de 2008

Fácil é falar!




A bela foto foi feita pelo César, do Animot, numa daquelas aulas sobre pensamentos de re no PPG da UFRGS. Dá pra ver, no fundo, as operações de síntese do entendimento.......Admiro muito o trabalho desse cara, o João Carlos. Um filósofo de inteligência prodigiosa, tiradas memoráveis e homem público de primeira grandeza. A última tirada dele ocorreu num Simpósio sobre Ensino de Filosofia. Alguém na platéia sugeriu que filosofia era uma coisa viva, fácil. Fácil é falar! retrucou, com toda razão, o Professor.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Artigo de Leonardo Boff sobre consumismo

Esse texto foi expropriado do blog Diario Gauche (http://www.diariogauche.blogspot.com/) do Cristóvão, um blogueiro atuante e super esperto. Reproduzo o texto aqui, pois me pareceu apropriado para essa época de catástrofe de recursos, de desprezo pela vida e de laços humanos frágeis.

Quatro ‘erres’ contra o consumismo

A fome é uma constante em todas as sociedades históricas. Hoje, entretanto, ela assume dimensões vergonhosas e simplesmente cruéis. Revela uma humanidade que perdeu a compaixão e a piedade. Erradicar a fome é um imperativo humanístico, ético, social e ambiental. Uma pré-condição mais imediata e possível de ser posta logo em prática é um novo padrão de consumo.
A sociedade dominante é notoriamente consumista. Dá centralidade ao consumo privado, sem autolimite, como objetivo da própria sociedade e da vida das pessoas. Consome não apenas o necessário, o que é justificável, mas o supérfluo, o que questionável. Esse consumismo só é possível porque as políticas econômicas que produzem os bens supérfluos são continuamente alimentadas, apoiadas e justificadas.
Grande parte da produção se destina a gerar o que, na realidade, não precisamos para viver decentemente.Como se trata do supérfluo, recorrem-se a mecanismos de propaganda, de marketing e de persuasão para induzir as pessoas a consumir e a fazê-las crer que o supérfluo é necessário e fonte secreta da felicidade.
O fundamental para esse tipo de marketing é criar hábitos nos consumidores a tal ponto que se crie neles uma cultura consumista e a necessidade imperiosa de consumir. Mais e mais se suscitam necessidades artificiais e em função delas se monta a engrenagem da produção e da distribuição. As necessidades são ilimitadas, por estarem ancoradas no desejo que, por natureza, é ilimitado. Em razão disso, a produção tende a ser também ilimitada.
Surge então uma sociedade, já denunciada por Marx, marcada por fetiches, abarrotada de bens supérfluos, pontilhada de shoppings, verdadeiros santuários do consumo, com altares cheios de ídolos milagreiros, mas ídolos, e, no termo, uma sociedade insatisfeita e vazia porque nada a sacia. Por isso, o consumo é crescente e nervoso, sem sabermos até quando a Terra finita aguentará essa exploração infinita de seus recursos.
Não causa espanto o fato de o presidente Bush conclamar a população para consumir mais e mais e assim salvar a economia em crise, lógico, à custa da sustentabilidade do planeta e de seus ecossistemas. Contra isso, cabe recordar as palavras de Robert Kennedy, em 18 de março de 1968: "Não encontraremos um ideal para a nação nem uma satisfação pessoal na mera acumulação e no mero consumo de bens materiais. O PIB não contempla a beleza de nossa poesia, nem a solidez dos valores familiares, não mede nossa argúcia, nem a nossa coragem, nem a nossa compaixão, nem a nossa devoção à pátria. Mede tudo menos aquilo que torna a vida verdadeiramente digna de ser vivida". Três meses depois foi assassinado.
Para enfrentar o consumismo urge sermos conscientemente anticultura vigente. Há que se incorporar na vida cotidiana os quatro "erres" principais: reduzir os objetos de consumo, reutilizar os que já temos usado, reciclar os produtos dando-lhes outro fim e finalmente rejeitar o que é oferecido pelo marketing com fúria ou sutilmente para ser consumido.
Sem esse espírito de rebeldia conseqüente contra todo tipo de manipulação do desejo e com a vontade de seguir outros caminhos ditados pela moderação, pela justa medida e pelo consumo responsável e solidário, corremos o risco de cairmos nas insídias do consumismo, aumentando o número de famintos e empobrecendo o planeta já devastado.
Artigo do teólogo católico Leonardo Boff, publicado hoje no Jornal do Brasil.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Viver nas cidades


Postei alguma coisa esses dias sobre a vida nas cidades. Vai minha última crônica sobre a cena santa-cruzense. Fiquei empolgado com um show do Deep Purple Cover no Vitrolão, uma espécie de bar underground, tri alternativo, que abriu aqui. Também gostei do The Doors Cover que tocaram no Icon. Essas duas casas me fizeram acreditar numa era de liberdade nessa terra bem regrada e que parece promover o mesmo infinitamente.


Cena Santa


Cidades costumam ter seu palco, são um cenário de acontecimentos. “As cenas da cidade” era a expressão que os filósofos franceses usavam para descrever a vida cultural de Paris e de outras grandes cidades européias. E a cultura acompanha toda boa cidade, formando um longo circuito de veias e perambulações em busca do novo espetáculo, da nova casa, bar ou lugar para cultivar o espírito e o corpo.
Santa Cruz andava, nesse quesito, meio parada. Um ar novo, interessante, no entanto, anda soprando e a atmosfera urbana parece querer nos convidar para um passeio. Quem circula um pouco e gosta de novidade já notou o florescimento de uma cultura alternativa, rica, cheia de esperança, seja na forma das várias bandas da gurizada que andam ensaiando e fazendo um ou outro show, seja nos bares e casas de espetáculo que as abrigam. Parece-me que estamos finalmente aprendendo que o espaço público é um espaço de expressão, vivência e aprendizado, uma oportunidade de viver.
É difícil definir o que é uma boa cidade. Considero um item para pertencer a essa classe a capacidade de promover a libertação da alma, essa vivacidade comum que transpira nos olhos, nos cabelos, na pele das pessoas, deixando-as criativas, interessantes e avessas. Nada de morto ou parado, de repetição cansada. Viva a luz da diferença! Paris estava assim em maio de 68. Nós que andamos em passos curtos estamos apenas adentrando nessa estrada. Mas vai chegar o dia em que poderemos dizer, gritar ou escrever palavras belas até mesmo aqui onde tudo é muito certo e comportado, “A floresta precede o homem, o deserto o segue” ou “sejam realistas, exijam o impossível!” como os jovens de 68 faziam nas ruas cheias de autoridade e tradição da França.
Uma boa cidade cultiva sonhos e é também um lugar para estar em casa, para estar bem onde se está. Ficar em casa não é ficar de um certo modo e sentir que se não estamos nesse modo, não somos. Ficar em casa é estar sem nenhuma renúncia, sem, principalmente, a renúncia ao desfrute desse bem frágil, necessariamente limitado, que são as nossas horas. A cidade livre, guiada por expressão firme, alegria e amor surge quando abandonamos o temor solitário de podermos ser quem somos. Por isso, os bons lugares são sempre lugares para se estar à vontade.
A nossa cena, hoje, é um palco aberto e renovado. Estive esses dias vendo uns shows no Vitrolão, depois no Icon. Nem tudo são flores, mas nunca me encontrei, nem estive tão em casa com minha alma velha e bagançuda, quanto diante do rock das guitarras jovens, destruindo em acordes a cultura convencional. Como se dizia no meu tempo...muito massa, cara!

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Wit, Emma Thompson e a reflexão sobre a morte






Estou colocando aqui um texto que escrevi em 2006 para o II Ciclo de Cinema e Filosofia, realizado pelo Curso de Filosofia da UNISC. Na época, o Prof. Marco Antônio Azevedo esteve em Santa Cruz, deu uma bela palestra sobre Bioética e ainda apresentou o melhor comentário que já assisti sobre Mar Adentro, do diretor Alejandro Amenabar. A postagem do texto foi motivada por uma conversa paralela com meu amigo blogueiro Giovani, o pai do Rei da França, (veja no endereço http://inexistenciaintencional.blogspot.com/) e que agora anda encucado com a morte...essa...que veste capa preta e leva as pessoas embora. A melhor coisa do meu comentário é o poema do John Done.


Comentário sobre o Filme Uma Lição de Vida de Mike Nichols. Prof. Flavio Williges- Curso de Filosofia- UNISC. 25 de Maio de 2006.

O filme Uma Lição de Vida apresenta uma série de desafios ao espectador. Alguns desses desafios dizem respeito à questões mais práticas como, por exemplo, questões de ética médica e humanização das relações em ambientes profissionais (Universidade, Hospital, etc). Outros tem uma raiz mais profunda e tratam, especialmente, da capacidade humana de lidar com a própria finitude, com a dor, o sofrimento e a morte.
Começarei este comentário fazendo algumas observações sobre estes pontos mais gerais (que são temas de grande interesse filosófico) e avançarei para as questões mais específicas (ética das relações, especialmente no cuidado). .
Em primeiro lugar, é relevante notar que certos aspectos da linguagem fílmica são explorados pelo diretor para fazer o próprio espectador experimentar em si mesmo os dramas da vida da paciente. As tomadas em primeiro plano, onde a atriz (Emma Thompson) fala diretamente para a câmera remetem, invariavelmente, à idéia de que alguém está falando conosco e o efeito produzido é o reconhecimento de que quem está sofrendo e dá-se conta de sua própria mortalidade não é apenas a personagem, mas o próprio espectador. Assim, os temas abordados aparecem claramente como temas exemplares para nós, pois a impressão produzida é que o enredo, a história contada, não é de alguém distante; a história inteira ou a tragédia é uma tragédia humana, nossa também.
Em segundo lugar, o filme trata de dois personagens que possuem um “caráter” muito próximo, apesar de atuarem em áreas distintas (pesquisa médica e poesia). Os dois (o Médico Kelekian, depois substituído na trama pelo médico residente e a Profa. Vivian) representam, de certo modo, celebridades em suas áreas de trabalho. Essa notoriedade adveio especialmente do modo inflexível como ambos desenvolveram suas carreiras profissionais. São, nesse sentido, dois profissionais brilhantes e o filme sugere que isso se deve, em boa medida, à inflexibilidade, rigor e uma grande frieza no trabalho. Ambos operam no interior de um esquema produtivo e competente, com ênfase no estudo minucioso e rigoroso de seus diferentes objetos. O Dr. mantém essa postura firme até o final, a postura de alguém que vê na doença a oportunidade de novas descobertas e de fazer a ciência médica progredir. No caso da professora, o “espírito forte” oferece inicialmente a idéia de que a mesma inflexibilidade revelada noutros contextos da vida poderia ser transportada para o contexto do enfrentamento da doença e garantir, no final, a cura. A razão disso é que, mesmo na doença, a fortaleza nos permite assumir a posição de atores, de guiar, controlar e comandar, ao invés de ver as coisas se desenrolarem sem sermos capazes de fazer nada. No entanto, aos poucos vai sendo mostrado que, nas doenças incuráveis, como o câncer em estágio avançado, até o ser humano mais forte é jogado diante da necessidade da inclinação diante de uma realidade que é parte da vida, mas que a ultrapassa, que não podemos resolver, pois não há luta, nem caminho pelo qual avançar. É diante do reconhecimento dessa fatalidade que a inflexibilidade vai dando lugar ao medo, a necessidade do calor e contato humano. Nesse sentido, o filme revela duas diferentes representações do homem no mundo que são de grande interesse filosófico:
a) de um lado temos a indicação de uma representação onde a vida aparece como sendo aquilo que é revelado através das ciências naturais, onde o homem aparece como alguém que estabelece com o mundo relações de conhecimento, de cognição. Segundo tal visão, os humanos são parte da natureza e, assim, a idéia de examinar ou estudar e, especialmente, “tratar” um humano se aproxima da idéia de tratar um outro objeto ou coisa qualquer do mundo, como uma laranja com fungo ou um motor encrencado. No interior dessa visão aparece também o papel que a razão instrumental assume na questão da conduta da vida. Com o avanço da ciência, a idéia de uma razão baseada em cálculos de meios-fins, tornou-se largamente aceite. Através de um procedimento formalizado podemos analisar as coisas de modo a atingir nossos objetivos. Essa possibilidade de cálculo estratégico é muito aplicada até hoje inclusive em terapias de desenvolvimento pessoal e programas de auto-ajuda. Ela inclui especialmente imagens como da vida como um jogo de xadrez no qual nós temos diante de nós um tabuleiro e onde o movimento planejado das peças garantem o sucesso no jogo. Essa imagem não estava presente claramente em nenhum dos dois personagens centrais, mas ela é útil para entender uma visão redutiva da vida que era parte da imagem de ambos do mundo. Em cada um deles, parecia pesar a idéia do desenvolvimento de um projeto racional da vida, que envolvia o controle e a idéia de vencer os desafios (esse ponto aparece também na aposta do médico residente e da professora, quando jovem pesquisadora, de voltar para a biblioteca e estudar).

b) Há, no entanto, e essa ressalva deve ser muito bem apreciada, um tema moral no filme que, mesmo dentro da visão esboçada anteriormente, deve ser considerado. Nas concepções mais antigas da vida se fazia a distinção entre (1) mera vivência, a existência fundada na satisfação das necessidades práticas (casa, comida, etc.) e (2) uma mais elevada ou melhor forma de existência que podemos atingir se compreendermos o nosso objetivo correto na vida. A Profa Vivian (e todos os personagens do filme), desde os princípios de sua carreira, manifestam a preocupação pela pergunta acerca do tipo de características que uma vida boa deve ser capaz de incorporar. A maioria delas responde essa pergunta na direção da excelência nas suas diferentes áreas de trabalho. No entanto, é possível reconhecer que a personagem passa por uma transformação que significou colocar, dentro desse modelo de uma vida perfeita ou da melhor vida para o homem, os temas do amor, da presença, do afeto e da atenção. É irônico, nesse sentido, notar que o alvo dessa descoberta seja alguém que sempre esteve próxima da morte e da temática da perda, dos temas humanos, mas sempre procurou tratar desses temas como um cirurgião que disseca um cadáver. Assim, o descobrimento e a transformação vivida pela personagem acaba por oferecer uma imagem (contrariamente à imagem científica, instrumentalista da vida traçada acima) muito mais incorpada do humano, um sentido onde o homem não se reduz a uma rede de relações técnico-cognitivas e num espaço de manipulação de resultados. O que a transformação mostra é, nesse sentido, que o homem estabelece relações existenciais-afetivas e fruitivas com o mundo. Nós não apreendemos e experimentamos o mundo apenas como alguém que o conhece e calcula estrategicamente seus passos sobre ele. Nós também sofremos ou sentimos alegria com a vida e com o fato de termos ser, existência. Essa presença humorada no mundo mostra que ele não é, para nós, apenas o lugar onde estamos, um lugar que conhecemos, examinamos friamente e vencemos como um desafio. Estar no mundo tem, como dizia o filósofo Heidegger, não o sentido de “estar” como a água está no copo, mas de morar, estar junto, no sentido de ser algo que vivenciamos como alguém que tem de tomar conta de si mesmo, com todo o sentido da afetividade que essa noção pode ter.
É no interior da imagem do humano esboçada na letra (b), que o tema da morte adquire seu significado mais profundo. Paradoxalmente, assim como representa o fim das possibilidades, como um horizonte onde o homem não pode mais escolher ou a anulação da necessidade de tomar conta de seu ser, a morte aparece, especialmente pelo recurso ao soneto de John Donne, como uma benção, pois se, por um lado, a morte representa um enigma para quem vive, morrendo, a morte não mais conviverá conosco. “Morte morrerás”, é um tema que atravessa todo o filme.

Oh! Morte, que alguns dizem assombrosa
E forte, não te orgulhes, não és assim;
Mesmo aquele a quem visastes o fim,
Não morre; não te vejo vitoriosa.
Vens em sono e repouso disfarçada,
Prazeres para os que tu surpreendes;
E o bom ao conhecer o que pretendes
Descansa o corpo, a alma libertada.
Serves aos reis, ao azar e às agonias,
A ti, doença e guerra se acasalam;
Também os ópios e magias nos embalam,
Como o sono. De que te vanglorias?
Um breve sono que a vida eterna traz,
Golpeia a morte, Morte morrerás.

Nesse sentido, a morte não é representada como um tema revelador de desespero. Ela revela um certo alento, uma certa tranqüilidade, não apenas para alguém que está doente, mas na própria linha geral sobre a qual transcorre a vida. Morrer se assemelha um pouco, pelo menos conforme podemos ler nos últimos momentos do filme, com as mãos afetuosas da enfermeira atenciosa que traduzem silêncio e tranqüilidade; pode significar a orientadora já velhinha lendo a bela história da criança. Ao morrer, em parte, parece-me que isso é sugerido, ingressamos no reino da inocência e a vida pode transcorrer sem os cuidados e desafios que enfrentamos no turbilhão social. É verdade que o sofrimento e a morte não podem ser reduzidos a uma experiência poética sublime, mas o filme parece indicar claramente que a finitude humana é finita e que, vista desse modo, a própria morte pode representar uma condição de libertação de um sofrimento associado com o fato de sermos finitos. “Descansa o corpo, a alma libertada”, diz o soneto de John Donne. Lembremos o que Sócrates diz sobre a morte:


pensemos agora na grande esperança que há de que a morte seja um bem. Na realidade, com a morte tem de acontecer uma de duas coisas: ou o que morre se converte em nada e, portanto, fica privado para sempre de qualquer sentimento, ou, segundo se diz, a alma sofre uma mudança e passa deste para outro lugar. Se todo o sentimento cessa e o que há é como um sono, em que nada se vê, nem em sonho, então a morte será um benefício maravilhoso” (Platão, Apologia de Sócrates, p. 40)

Por último, gostaria de indicar um tema que é abordado com brilhantismo no artigo “A profissão sob Risco” do Professor Dr. Marco Antônio Oliveira de Azevedo. Nesse artigo ele afirma que “...o valor que centraliza a atividade médica é a saúde humana. Se é assim, então ‘aliviar o sofrimento’ e ‘salvar vidas’ são missões importantes, porém, subordinadas à meta principal: proteger, promover e recuperar a saúde das pessoas. Desse modo, entender o que significa ‘saúde’ de um ponto-de-vista médico é vital para a própria ética médica” (2206, p. 13). Creio que Uma lição de Vida (Wit) traz uma contribuição importante para este tema, pois a idéia de uma medicina curativa, voltada para o tratamento da doença, em geral provocando grande sofrimento, é um indício de que a saúde deve ser buscada primordialmente fora do registro dos processos de cura (na prevenção, especialmente), cuidando, sobretudo, do nosso modo de vida.

Discutindo Filosofia


Já está nas bancas, junto com o Davi, o meu texto "O homem em questão" que saiu, ligeiramente modificado, na revista Discutindo Filosofia, n. 12., de boa qualidade gráfica, editorial e que circula nas bancas de todo o Brasil.


Nas primeiras frases lê-se o seguinte:

"A filosofia vem atraindo uma atenção cada vez maior da opinião pública. Apesar dessa valorização e desse interesse, ainda pairam muitas dúvidas quanto ao papel do pensamento filosófico tanto no ensino público fundamental quanto nos projetos pedagógicos dos currículos do ensino médio e superior. Que contribuições a filosofia poderia dar para a educação?

A filosofia pode ser pensada como um tipo de investigação particular na qual se busca o conhecimento e a reflexão sobre o destino do homem, sobre a finalidade da vida, sobre aquilo que devemos fazer de nós mesmos para alcançarmos o ideal de vida ("a boa e melhor vida que pode ser vivida por um ser humano" na versão original que foi ligeiramente alterada). Essa idéia da filosofia como magistrae vitae, ainda que um tanto vaga, parece parte daquilo que está subentendido quando se pensa na figura do filósofo como amigo da sabedoria, como um personagem que deseja saber como viver e pretende que essa vida seja de felicidade dentro da verdade, isto é, a felicidade acima de qualquer ilusão ou convenção. Tendo como base essa idéia, é possível extrair uma indicação da importância da filosofia na educação e na formação do pensamento em torno da condição humana no presente (p. 11). ....e por aí vai.

domingo, 4 de maio de 2008

Maio de 68

Pesquei o artigo do Zizek (abaixo) no excelente blog Diário Gauche. Não conheço e não gosto muito desse cara, o Zizek. Mas esse artigo dele sobre o maio de 68 tá bem legal. Prá quem não conhece, vai, de quebra, uma fotinho do cara.



Sejamos realistas, exijamos o impossível!

Um dos grafites mais conhecidos dos muros de Paris em 1968 era: "As estruturas não andam pelas ruas!". Isto é, não se podem explicar as grandes manifestações de estudantes e trabalhadores do Maio de 68 como determinadas pelas mudanças estruturais na sociedade.
Mas, segundo Jacques Lacan, foi exatamente isso o que aconteceu em 1968: as estruturas saíram às ruas. Os eventos explosivos visíveis foram, em última instância, o resultado de um desequilíbrio estrutural - a passagem de uma forma de dominação para outra; nos termos de Lacan, do discurso do mestre para o discurso da universidade.
Os protestos anticapitalistas dos anos 60 suplementaram a crítica padrão da exploração socioeconômica pelos temas da crítica social: a alienação da vida cotidiana, a "mercadorização" do consumo, a inautenticidade de uma sociedade de massa em que "usamos máscaras" e sofremos opressão sexual e outras, etc.
Mas o novo espírito do capitalismo recuperou triunfalmente a retórica anti-hierárquica de 1968, apresentando-se como bem-sucedida revolta libertária contra as organizações sociais opressivas do capitalismo corporativo e do socialismo "realmente existente".
O que sobreviveu da libertação sexual dos anos 1960 foi o hedonismo tolerante, facilmente incorporado a nossa ideologia hegemônica: hoje o prazer sexual não apenas é permitido, é ordenado - os indivíduos se sentem culpados quando não podem desfrutá-lo.
A tendência às formas radicais de prazer (por meio de experiências sexuais e drogas ou outros meios de indução ao transe) surge em um momento político preciso: quando o "espírito de 68" esgota seus potenciais políticos. Nesse ponto crítico (meados dos anos 70), a única opção restante foi um direto e brutal empurrão para o real, que assumiu três formas principais: a busca por formas extremas de prazer sexual, a opção pelo real de uma experiência interior (misticismo oriental) e, finalmente, o terrorismo político de esquerda (Fração do Exército Vermelho na Alemanha, Brigadas Vermelhas na Itália etc.).
O que todas essas opções compartilham é um recuo do engajamento sociopolítico concreto para um contato direto com o real. Lembremos aqui o desafio de Lacan aos estudantes que protestavam: "Como revolucionários, vocês são histéricos que exigem um novo mestre. Vocês vão ganhar um". E o ganhamos, sob o disfarce do mestre "permissivo" pós-moderno cuja dominação é mais forte por ser menos visível.
Sem dúvida, muitas mudanças positivas acompanharam essa passagem - basta citar as novas liberdades das mulheres e seu acesso a cargos de poder.
Entretanto essa passagem para um outro "espírito do capitalismo" foi realmente tudo o que aconteceu nos eventos do Maio de 68, de modo que todo o entusiasmo ébrio de liberdade foi apenas um meio de substituir uma forma de dominação por outra?
Muitos sinais indicam que as coisas não são tão simples. Se examinarmos nossa situação com os olhos de 1968, devemos lembrar o verdadeiro legado desse ano: seu núcleo foi uma rejeição ao sistema liberal-capitalista.
É fácil zombar da idéia do "fim da história" de Francis Fukuyama, mas hoje a maioria é fukuyamista: o capitalismo liberal-democrático é aceito como a fórmula finalmente encontrada da melhor sociedade possível, e tudo o que se pode fazer é torná-la mais justa, tolerante etc.
Hoje a única verdadeira questão é: nós endossamos essa naturalização do capitalismo ou o capitalismo global de hoje contém antagonismos fortes o suficiente para impedir sua infinita reprodução?
Há (pelo menos) quatro desses antagonismos: a sombria ameaça da catástrofe ecológica, a inadequação da propriedade privada para a chamada "propriedade intelectual", as implicações socioéticas dos novos avanços tecnocientíficos (especialmente em biogenética) e as novas formas de apartheid, os novos muros e favelas. Os primeiros três antagonismos se referem aos domínios do que Michael Hardt e Toni Negri chamam de "comuns".
Há os "comuns de natureza externa" ameaçados pela poluição e a exploração (do petróleo a florestas e o próprio habitat natural), os "comuns de natureza interna" (o legado biogenético da humanidade) e os "comuns de cultura", as formas imediatamente socializadas de capital "cognitivo", basicamente a língua, nosso meio de educação e comunicação.
A referência a "comuns" justifica a ressurreição da idéia de comunismo: nos permite ver o envolvimento progressivo dos comuns como um processo de proletarização daqueles que são assim excluídos de sua própria substância.

No entanto é apenas o antagonismo entre os "incluídos" e os "excluídos" que realmente justifica o termo comunismo. Em diferentes formas de favelas ao redor do mundo, presenciamos o rápido crescimento da população sem o controle do Estado, vivendo em condições meio fora-da-lei, em terrível carência de formas mínimas de auto-organização.
Se a principal tarefa da política emancipatória do século 19 foi romper o monopólio dos liberais burgueses por meio da politização da classe trabalhadora, e se a tarefa do século 20 foi despertar politicamente a imensa população rural da Ásia e da África, a principal tarefa do século 21 é politizar - organizar e disciplinar - as "massas desestruturadas" dos que vivem nas favelas.
Se ignorarmos esse problema dos excluídos, todos os outros antagonismos perdem seu viés subversivo. A ecologia se transforma em um problema de desenvolvimento sustentável, a propriedade intelectual em um complexo desafio jurídico, a biogenética em uma questão ética.
Sem o antagonismo entre incluídos e excluídos, poderemos nos encontrar em um mundo em que Bill Gates é o principal humanista, lutando contra a pobreza e as doenças, e Rupert Murdoch o maior ambientalista, mobilizando milhões de pessoas por meio de seu império da mídia.
O verdadeiro legado de 1968 é melhor resumido na fórmula "soyons realistes, demandons l'impossible!" [sejamos realistas, exijamos o impossível!].
A verdadeira utopia é a crença em que o sistema global existente pode se reproduzir indefinidamente. A única maneira de ser verdadeiramente realista é imaginar o que, dentro das coordenadas desse sistema, só pode parecer impossível.

Artigo de SLAVOJ ZIZEK, filósofo e escritor esloveno.

Filosofia como medicina da alma

















Quadro 1: Cícero acusando Catilina de Cesare Maccari
Quadro 2: La Morte di Seneca de Cesena

Encontrei, no livro The Therapy of Desire da Martha Nussbaum, essas duas passagens (citadas abaixo) dos filósofos estóicos Marco Túlio Cícero e Lucio Aneo Sêneca, onde é apresentada uma imagem da filosofia como "medicina da alma". A tradução livre é minha. Tais passagens são uma lembrança importante numa época em que a antiga vinculação da filosofia com o cuidado da alma e o serenamento das paixões anda praticamente esquecida. Bom Proveito!
"There is, I assure you, a medical art for the soul. It is philosophy, whose aid need not be sought, as in bodily diseases, from outside ourselves. We must endeavor with all our resources and all our strenght to become capable of doctoring ourselves" (Cic. TD 3.6)

"Há, eu garanto, uma medicina da alma. É a filosofia, cujo benefícios não precisam provir, como nas doenças do corpo, de fora de nós mesmos. Devemos nos aplicar com todas nossos recursos e toda nossa força para tornar-nos capazes de curar a nós mesmos" (Cícero, Tusculanas, 3.6).

"I am writing down some healthful practical arguments, prescriptions for useful drugs; I have found them effective in healing my own ulcerous sores, wich, even if not thoroughly cured, have at least ceased to spread"(Sen. Ep. 8.2.)

"Estou escrevendo alguns argumentos práticos salutares, prescrições de drogas úteis; considerei-os eficientes para aliviar minhas próprias feridas dolorosas, que, mesmo se não inteiramente curadas, ao menos deixaram de crescer" (Seneca, Epistolas, 8.2)

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Viver a cidade!


Ah! Porto Alegre...tão bonita. Guardo bem vivo na memória o dia em que te vi, depois de atravessar a estrada de campos desertos e silenciosos que atravessa Passo do Sobrado, General Câmara, São Jerônimo, Charqueadas indo se abrir na ponte do Guaíba. Mas ando mesmo é pensando no sentido de morar, de estar numa cidade ou lugar que é nossa casa.
Vivemos num mundo de gentes, milhares de pessoas, e as visões são sempre corrompidas pela exaustão dos olhares vazios, cheios de dogmas e fantasmas, cheios de perfumes ácidos de convenção e sombras de aprisionamento pela visão avaliativa, opressora, que mede a grandeza da alma pelo cristalino do universo aparente. Sem roubar nossa carteira, sem nos espancar na porta do bar, os habitantes das cidades sabem ser violentos, sabem ser uma ameaça para quem deseja simplesmente estar em casa onde vive. Uma sociedade de cegos com olhos abertos ou uma sociedade de cegos por infortúnio? O que você prefere?

O Espírito da Intimidade


David Bernstein Fine Art
737 Park Avenue, Suite 11B
New York, NY 10021 USA










"Quer admitamos ou não, existe uma dimensão espiritual em todos os relacionamentos, independentemente de sua origem. Duas pessoas unem-se porque o espírito as quer juntas. Assim, é importante ver o relacionamento como algo movido pelo espírito, e não pelo indivíduo.
O papel do espírito é o de guia que orienta nossos relacionamentos para o bem. Seu propósito é nos ajudar a ser pessoas melhores, a nos unir de forma a manter nossa conexão não apenas com nós mesmos, mas também com o além. O espírito nos ajuda a realizar o propósito de nossa vida e a manter nossa sanidade. O espírito é a força vital que há em tudo [...] a força vital que nos ajuda a realizar nosso propósito de vida e a manter nossa conexão com o mundo espiritual".
Trecho de O Espírito da Intimidade de Sobonfu Somé, membro da tribo Dagara de Burkina Faso, antiga Volta Superior, na África do Oeste.


No country for old men!



Intrigante é o melhor termo que conheço para definir o último filme dos irmãos Coen, que esteve em cartaz no cine Santa Cruz. Como ocorre em todo bom filme, não é fácil definir a natureza da perturbação que ele provoca, pois não se trata de algo evidente. No início cheguei a imaginar que estava vendo um filme comum, pois a história toda parece seguir o mesmo percurso dos roteiros de violência e perseguição que dominam Hollywood: um psicopata implacável (Anton, protagonizado por pelo ator espanhol Javier Barden), guiado por um instinto calculado de morte e sangue, muitas mortes. A primeira incongruência, no entanto, é dada pela sutileza do cenário da trama: as belas paisagens do deserto texano, um recurso onde a poesia e a beleza são obrigadas a contracenar com o plano da destruição reinante representado na tremenda cena de abertura e, depois, na contraposição entre a calma do deserto e um matador moderno, representante dos novos tempos, que recria a morte pela tecnologia das armas letais, como o cilindro de gás usado para abater animais.
Ainda, a paisagem que desenhou os traços fortes do rosto dos vaqueiros, os brutos de “hábitos rudes e valores simples”, como disse certa vez Mr. Bush, aparece em franco contraste com a palidez e ausência de contornos físicos definidos, quase androgênico do visual do matador Anton, como se ele não fosse alguém, nenhuma pessoa, talvez a personificação do conceito de um mal racional, de uma morte determinada e certa.
Se poderia dizer que o filme conta a história de uma transformação no modo de vida, uma passagem onde homens velhos, acostumados com um ritmo do mundo, que não conseguem aprender a viver segundo a nova lógica das coisas. Mas não se trata propriamente de uma luta geracional, se trata da luta pela compreensão de uma realidade mutante, que extermina e apaga vidas, faz os destinos se dissiparem, as decisões acontecerem num lance de jogo e tudo aquilo que oferece terreno para assentar os pés, aquilo que delimita e ajuda a entender a nós mesmos, absorve-se numa guerra apocalíptica, destruindo e mergulhando a alma de todos numa atmosfera de incompreensão, de absurdo espectral, de maravilhamento negativo e impotente. Tommy Lee Jones, o xerife cansado e narrador do filme, encarregado de prender o assassino e proteger, não protege, está sempre atrás dos fatos. Depois de anos tentando compreender o que acontece, ele confessa: não há mais lugar para razões de nenhum tipo, a violência, os acontecimentos, tudo corre sem direção. Antes se matava por honra ou amor, agora, não se pode nem saber. “Achava que iria compreender, mas não compreendo”. E quem tenta entender pode talvez descobrir o simples raso: "it´s all about money and drugs", não há sentido, as questões supremas, a vida e o amor, perderam completamente sua relevância, fazemos parte de algo que não sabemos mais o que é.

Arquivo do blog