terça-feira, 20 de maio de 2008




A FOME INFAME

Transnacionais de alimentos lucram com aumento da fome
A fome no mundo é a nova grande fonte de lucros do grande capital financeiro e os lucros aumentam na mesma proporção que a fome. Nos últimos meses, os meses do aumento da fome, os lucros da maior empresa de sementes e de cereais aumentaram 83%. Ou seja, a fome de lucros da Cargill alimenta-se da fome de milhões de seres humanos. A análise é de Boaventura de Sousa Santos.

Boaventura de Sousa Santos

Há muito conhecido dos que estudam a questão alimentar, o escândalo finalmente estalou na opinião pública: a substituição da agricultura familiar, camponesa, orientada para a auto-suficiência alimentar e os mercados locais, pela grande agro-indústria, orientada para a monocultura de produtos de exportação (flores ou tomates), longe de resolver o problema alimentar do mundo, agravou-o.
Tendo prometido erradicar a fome do mundo no espaço de vinte anos, confrontamo-nos hoje com uma situação pior do que a que existia há quarenta anos. Cerca de um sexto da humanidade passa fome; segundo o Banco Mundial, 33 países estão à beira de uma crise alimentar grave; mesmo nos países mais desenvolvidos os bancos alimentares estão a perder as suas reservas; e voltaram as revoltas da fome que em alguns países já causaram mortes. Entretanto, a ajuda alimentar da ONU está hoje a comprar a 780 dólares a tonelada de alimentos que no passado mês de março comprava a 460 dólares.A opinião pública está a ser sistematicamente desinformada sobre esta matéria para que se não dê conta do que se está a passar. É que o que se está a passar é explosivo e pode ser resumido do seguinte modo: a fome do mundo é a nova grande fonte de lucros do grande capital financeiro e os lucros aumentam na mesma proporção que a fome.A fome no mundo não é um fenômeno novo. Ficaram famosas na Europa as revoltas da fome (com o saque dos comerciantes e a imposição da distribuição gratuita do pão) desde a Idade Média até ao século XIX. O que é novo na fome do século XXI diz respeito às suas causas e ao modo como as principais são ocultadas. A opinião pública tem sido informada que o surto da fome está ligado à escassez de produtos agrícolas, e que esta se deve às más colheitas provocadas pelo aquecimento global e às alterações climáticas; ao aumento de consumo de cereais na Índia e na China; ao aumento dos custos dos transportes devido à subida do petróleo; à crescente reserva de terra agrícola para produção dos agro-combustíveis.
Todas estas causas têm contribuído para o problema, mas não são suficientes para explicar que o preço da tonelada do arroz tenha triplicado desde o início de 2007. Estes aumentos especulativos, tal como os do preço do petróleo, resultam de o capital financeiro (bancos, fundos de pensões, fundos hedge [de alto risco e rendimento]) ter começado a investir fortemente nos mercados internacionais de produtos agrícolas depois da crise do investimento no sector imobiliário.
Em articulação com as grandes empresas que controlam o mercado de sementes e a distribuição mundial de cereais, o capital financeiro investe no mercado de futuros na expectativa de que os preços continuarão a subir, e, ao fazê-lo, reforça essa expectativa. Quanto mais altos forem os preços, mais fome haverá no mundo, maiores serão os lucros das empresas e os retornos dos investimentos financeiros.
Nos últimos meses, os meses do aumento da fome, os lucros da maior empresa de sementes e de cereais aumentaram 83%. Ou seja, a fome de lucros da Cargill alimenta-se da fome de milhões de seres humanos.
O escândalo do enriquecimento de alguns à custa da fome e subnutrição de milhões já não pode ser disfarçado com as “generosas” ajudas alimentares. Tais ajudas são uma fraude que encobre outra maior: as políticas econômicas neoliberais que há trinta anos têm vindo a forçar os países do terceiro mundo a deixar de produzir os produtos agrícolas necessários para alimentar as suas próprias populações e a concentrar-se em produtos de exportação, com os quais ganharão divisas que lhes permitirão importar produtos agrícolas... dos países mais desenvolvidos.
Quem tenha dúvidas sobre esta fraude que compare a recente “generosidade” dos EUA na ajuda alimentar com o seu consistente voto na ONU contra o direito à alimentação reconhecido por todos os outros países.
O terrorismo foi o primeiro grande aviso de que se não pode impunemente continuar a destruir ou a pilhar a riqueza de alguns países para benefício exclusivo de um pequeno grupo de países mais poderosos. A fome e a revolta que acarreta parece ser o segundo aviso. Para lhes responder eficazmente será preciso pôr termo à globalização neoliberal, tal como a conhecemos.
O capitalismo global tem de voltar a sujeitar-se a regras que não as que ele próprio estabelece para seu benefício. Deve ser exigida uma moratória imediata nas negociações sobre produtos agrícolas em curso na Organização Mundial do Comércio. Os cidadãos têm de começar a privilegiar os mercados locais, recusar nos supermercados os produtos que vêm de longe, exigir do Estado e dos municípios que criem incentivos à produção agrícola local, exigir da União Europeia e das agências nacionais para a segurança alimentar que entendam que a agricultura e a alimentação industriais não são o remédio contra a insegurança alimentar. Bem pelo contrário.

URL=http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=14976

8 comentários:

Cé S. disse...

Flávio,

Partindo do consequencialismo do Peter Singer, vejo a especulação sobre alimentos como falta moral. Eis o esboço do argumento:

1. Somos responsáveis pelas consequências de tudo o que está ao nosso alcance. (Princípio consequencialista)

2. Há décadas que produzimos alimentos suficientes para todos. (Fato)

3. Mas, há fome. (Fato)

4. Nós que comemos podemos destinar os alimentos disponíveis aos que têm fome. (Instanciação do princípio)

5. Mas não o fazemos. (Fato)

6. Logo, a responsabilidade pela fome dos outros é nossa. (Conclusão)

Cé S. disse...

A foto do filme A Comilança tá ótima.

Flavio Williges disse...

Formalmente falando a primeira premissa do teu argumento é ambigua. O que caracteriza "tudo o que está ao nosso alcance". O quantificador universal, se entendo bem, não é transparente nesse tipo de formulação. Se estou preso num porão, como aquela moça na Austria, tudo o que está ao meu alcance não inclui a distribuição de alimentos. Acho que tem problema aí em função daquela história que o Faria sempre fala de oratio recta e oratio obliqua dos medievais. Que achas?

Cé S. disse...

Ei Flávio,

Se estou preso em um porão, tal como aqueles pobres diabos da Áustria, então simplesmente não está ao meu alcance um monte de coisas: sair do porão, impedir a especulação com alimentos, etc. Não vejo maiores problemas com isso. É parecido com oc caso no qual não posso comprar um lápis de 2 reais porque só tenho 1 real.

Mas, se tenho grana para investir, então está ao meu alcance decidir fazer um monte de coisas, e minha decisão tem consequências pelas quais sou responsável. Se escolho algo que aumenta a fome e a mortalidade, como a especulação com alimentos, e meu motivo é fútil, a cobiça, então sou responsável por tais mortes, do mesmo modo que ocorreria se tivesse atirado na cara das pessoas que morreram de fome ou doenças relacionadas à mesma.

Não entendi o outro lance.

Flavio Williges disse...

César,

Tens razão em defender que obter ganhos especulativos a partir das comodities de produtos agrícolas é uma falha moral. Na cadeia de razões, tal ação promove a fome. Uma pergunta: o consequencialismo além de fundar uma ética não pode ser entendido como agente causador de dilemas éticos?. Por exemplo: o direito individual à propriedade (que é aceito em quase todo o ocidente como algo bom) pode também ser questionado se adotamos o consequencialismo. Uma pessoa que ganha bastante e que usa o seu poder econômico para alcançar lucros cada vez maiores também contribui para a fome, pois o acúmulo de riqueza produz dependência e servidão. Nesse caso, o princípio consequencialista implica na restrição daquilo que tomamos por um bem e isso é uma consequência danosa para um sistema moral.

Cé S. disse...

Flávio, para haver esse dilema precisaria haver um conflito entre dois bens...... mas não há! Afinal de contas, chamamos o que causa servidão de mal, não de bem, ainda que isso pareça um bem (seja um falso bem, um mero bem-aparente).

Flavio Williges disse...

César,
Quis dizer que aceitar o consequencialismo implica jogar fora muita coisa que consideramos bom como, por exemplo, o direito à propriedade. Em outras palavras, um consequencialismo simpliciter não funciona, mas poderia ser admitido com algumas hipóteses ad hoc, etc, como os cientistas fazem as vezes para não abandonar uma teoria.

Cé S. disse...

Não tô entendendo, Flávio. Você está sugerindo, ou pressupondo, que basta algo ser considerado-como-bom para ser bom?

Tal como vejo as coisas, é usual que se considere como bom algo que é mau, e o que importa, para o argumento moral, não é a aparência-de-bem, mas se a coisa é boa tout court ou má tout court. E, no seu exemplo, você mostra algo mau tout court, apesar das aparências contrárias, para alguns.

E, quanto ao livrar-se do que é mau, apesar de parecer bom, não é um dos benefícios do aprendizado moral? Não é esse tipo de mudança moral que se espera? Eu acho que sim.

Arquivo do blog