quinta-feira, 29 de maio de 2008

depois das declarações de amor pela filosofia do Ferst, me pareceu adequado colocar algo mais edificante aqui. Vai, então, um texto do César Schirmer sobre caminhada como exercício filosófico. Encontrei no Simplicíssimo. O César é dono dos pés acima. A foto chama-se "nadeando em Santa Cruz". Como vocês já sabem, ele escreve e fotografa muito bem.


A caminhada como exercício filosófico: o caso do Caminho de Santiago

*César Schirmer dos Santos


Para Davi Daniel Teixeira, meu encaminhado amigo.


Ao menos desde o advento da escola peripatética a prática da caminhada esteve associada ao exercício filosófico. Os historiadores nos dizem que Aristóteles costumava debater filosofia enquanto caminhava acompanhado dos seus discípulos. Talvez a prática seja ainda mais antiga, pois há testemunho que aquele que é considerado o primeiro filósofo ocidental, Tales de Mileto, certa vez caiu em um buraco enquanto caminhava observando as estrelas. Na ocasião uma jovem escrava não pôde deixar de rir do sábio, que enquanto tentava ver tão longe perdia de vista o que estava tão perto.
Atualmente os filósofos e teóricos em geral não caminham enquanto trabalham, a não ser, por exemplo, quando estão aparecendo em um especial da BBC. A filosofia atual é, em grande parte, obra de pessoas sentadas diante de computadores. Isto não deve nos levar a pensar, todavia, que o caminhar seja totalmente alheio ao filosofar. Na falta de exemplos sobre filósofos atuais, nos ocuparemos deste assunto a partir do belo trabalho etnográfico de Sean Slavin, em Walking as Spiritual Practice, sobre os peregrinos do Caminho de Santiago.
Certamente a peregrinação é um fenômeno muito distinto do ato de filosofar enquanto se caminha. É costumeiro que peregrinos em geral sejam fiéis ou devotos que buscam algum benefício material, prática esta que sem dúvida podemos caracterizar como uma forma de materialismo religioso. Mas neste ponto os peregrinos especificamente enfocados por Sean Slavin são vantajosos ao nosso estudo, pois não são nem devotos procurando a ajuda divina para alguma vantagem material, nem turistas que pretendem apenas admirar a paisagem ou tirar fotos ao estilo eu-estive-aqui. Seus peregrinos são ateus, agnósticos, não-seguidores do catolicismo ou de alguma outra religião específica, pessoas que simplesmente percorrem o caminho e, ainda que involuntariamente, encaminham-se.
Há ainda uma diferença entre as curtas caminhadas dos filósofos da Grécia e da BBC e a prática realizada pelos peregrinos de Sean Slavin. Enquanto os primeiros caminhantes já são praticantes da filosofia, os últimos são pessoas em geral que, voluntariamente ou não, chegam às práticas filosóficas a partir de práticas corpóreas. É o aspecto de introdução à prática do filosofar que enfocaremos nestes peregrinos.
Iniciemos por dar um ar de plausibilidade à nossa sugestão da caminhada como introdução ao filosofar e prática filosófica. Certamente há quem considere tal sugestão implausível, pois as pessoas intelectualizadas com as quais convivemos costumam permanecer sentadas nas suas mesas de trabalho durante o dia, e em assentos de cinema, poltronas em casa ou mesas de bares durante a noite. Além disso, os filósofos modernos são geralmente pessoas que permanecem sentadas, e isto influencia até mesmo seus textos, como em Descartes:
"... por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos..." [1]
Além do estereótipo do intelectual como pessoa sentada, ainda é comum que se considere as pessoas ativas como desmioladas, embora não haja nenhum motivo para relacionar-se uma coisa à outra. Mas ainda veremos tais coisas mudarem, e os sentados serem questionados em relação à manutenção da sua saúde mental.
Voltando ao nosso assunto, aparentemente alguns filósofos gregos praticavam filosofia caminhando, e Nietzsche alude aos pensamentos que surgem enquanto se caminha. Talvez a relação entre caminhar e pensar também possa ser estabelecida a partir das noções de ritmo e velocidade:
"Gosto de caminhar porque é lento, e suspeito que a mente, como os pés, trabalha a cerca de 3 milhas por hora." [2]
Enfim, a relação entre a prática do filosofar e o permanecer parado nos parece arbitrária, e parasitária do costume moderno de colocar a filosofia em letras ao invés dos sons da voz, ou mesmo da reflexão concomitante a uma prática lenta, aeróbica e ritmada como a caminhada.
Atualmente o Caminho de Santiago é percorrido de diversas maneiras, como por exemplo de carro, a cavalo, de bicicleta e à pé. Aqueles que o percorrem de carro não são considerados peregrinos nem mesmo pelas autoridades eclesiásticas. Os que o percorrem de cavalo são uma minoria. Dos considerados peregrinos, cerca de 30% fazem o percurso de bicicleta, cerca de 70% o fazem a pé, e aqui Sean Slavin percebe uma demarcação social, pois os peregrinos pedestres não consideram os ciclistas como peregrinos, visto que, pare eles, é muito difícil permanecer em um estado meditativo quando se está a 40 km/h. [3] Assim emerge algo importante para nós, pois os peregrinos pedestres alcançam um estado mental filosófico, a meditação, através da prática corpórea da caminhada.
E o que é a meditação? No seu trabalho etnográfico, Sean Slavin atribui aos peregrinos dois tipos de estados mentais: o retorno aos sentidos, ao aqui-e-agora do que de fato há para se ver, se ouvir e se cheirar, e a interiorização de cada um em si mesmo. Um estado não impede o outro, ao contrário. Ao fixar-se no mero percorrer, sem preocupar-se com o chegar, o peregrino percebe-se a si mesmo enquanto está a sentir o que há para sentir no momento. [4] Esta interiorização do peregrino em si mesmo muitas vezes é involuntária, e mesmo adversa às crenças anteriores do mesmo, como por exemplo neste relato:
"No começo eu só estava pensando em chegar ou em Santiago ou ao próximo monumento turístico. Então comecei a encontrar diferentes temas e idéias espirituais emergindo. Você começa a andar e, à medida que você o faz, você olha para dentro de si mesmo ... Você faz isto e percebe que o Caminho está lhe ensinando coisas espirituais. Só quando você toma um dia de cada vez você percebe isto. Mas também vi que muitas pessoas quiseram experimentar crença e contato com o espiritual. Eu queria distância disto. Não sou religioso e suspeitava de pessoas que eram." [5]
O peregrino narra uma série de mudanças em si mesmo -- relativas à distinçãoentre interior e exterior -- que experimentou ao longo dos dias em que percorreu o Caminho. No começo ele foca em coisas à frente no espaço e no tempo, como o fim da jornada, ou o próximo ponto turístico. Após algum tempo ele muda o foco das coisas exteriores e materiais às coisas interiores e espirituais. Ele passa de coisas exteriores significantes, como os monumentos, às coisas interiores significantes, e atribui esta mudança ao caminho. Também passa de algo histórico, o monumento, a algo puramente vivido, parte da história mas a-histórico, a própria experiência espiritual. [6]
Esta mudança é narrada pelo peregrino através da metáfora da emergência, do vir-à-tona de algo que estava ali, porém submerso. Isto que estava ali, o que emerge não é algo da passagem, mas o próprio eu do peregrino. Para o peregrino, o Caminho esta a revelá-lo para si mesmo. [7]
Esta auto-revelação é narrada através da metáfora da visão. O peregrino descobre-se a si mesmo porque o Caminho o faz "olhar" para dentro de si a partir de um ponto de vista privilegiado. Neste momento o peregrino é, ao mesmo tempo, observante e observado, e isto é o que o Caminho lhe ensina, a ver-se a si mesmo de um ponto de vista melhor, em relação àquele que ele tinha previamente. [8]
É digno de nota que o Caminho é fonte exterior de autoconhecimento, [9] e nisto há uma importante diferença entre a prática de autoconhecimento do peregrino e a prática de autoconhecimento de Descartes, por exemplo, onde cada um deve chegar a conhecer-se melhor a si mesmo a partir apenas de si mesmo, duvidando de todo o resto. Certamente o peregrino está a refletir, assim como o cartesiano reflete, porém ele, o peregrino, chega ao autoconhecimento de maneira heterônoma, contra a própria vontade, ao contrário do filósofo cartesiano, que inicia seu percurso filosófico-espiritual pela decisão autônoma [10] de seguir um método ou caminho:
"Mas não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade de me haver encontrado, desde a juventude, em certos caminhos, que me conduziram a considerações e máximas, de que formei um método, pelo qual me parece que eu tenha meio de aumentar gradualmente meu conhecimento, e de alçá-lo, pouco a pouco, ao mais alto ponto, a que a mediocridade de meu espírito e a curta duração de minha vida lhe permitam atingir." [11]
No relato do peregrino, ao permitir este autoconhecimento, isto é, a passagem do exterior ao interior, o Caminho de certa forma sai da ordem espacial dos monumentos e do ponto final da jornada, a cidade de Santiago, para reconhecer-se apenas na ordem temporal, pois o autoconhecimento advém de percorrê-lo um dia de cada vez. [12] Nisto a peregrinação é semelhante ao processo de autoconhecimento filosófico cartesiano, onde se passa, de maneira ascensional, de uma meditação a outra, chegando-se assim ao conhecimento de si e também à reforma do conhecimento da exterioridade. [13]
Para o peregrino do relato, a espiritualidade está no demorar-se percorrendo o Caminho, não no desejo vulgar de peregrinos que pretendem ter experiências espirituais. Estes parecem querer encontrar esta experiência no espaço, como que no terreno do Caminho -- se comportam como Pac Mans, devoradores de pontos espirituais --, sem entender que a experiência espiritual é a própria peregrinação, na sua dinâmica. [14]
No caso específico do Caminho de Santiago, os peregrinos exploram a polissemia do termo espanhol camino, presente na tradução do mesmo para o português, caminho. Seguir um caminho é ter uma rota, ir deliberadamente de um ponto de partida a um ponto de chegada. Mas seguir um caminho é, também, fazer as coisas do nosso jeito, como quando dizemos "segue teu caminho", ou mesmo, o que nos é mais relevante, ter conhecimento do procedimento adequado na vida, como quando dizemos que uma pessoa está encaminhada ou desencaminhada.
No caso do peregrino mencionado anteriormente, o Caminho o encaminha às coisas espirituais que ele mesmo não procurou. De certa forma, o Caminho o tira da atitude desencaminhada, do peregrino que procura apenas o próximo monumento, à atitude encaminhada, do peregrino que demora-se a seguir lenta e ritmadamente em frente. Seguir em frente é, simplesmente, caminhar. [15] Nesta caminhada, o Caminho o encaminha.
Para o peregrino que encaminha-se, percorrendo o Caminho, a exterioridade do espaço e tempo locais não são determinantes para que ele se desencaminhe. O Caminho é simbólico, a chegada a Santiago não tira o peregrino do Caminho, embora ele não esteja mais percorrendo-o com seu corpo. Uma vez tendo percorrido o Caminho, estando encaminhado, o peregrino segue adiante com sua vida.
--Referências--
Civita, Victor. (ed.). Descartes. Coleção "Os Pensadores", trad. Jacó Guinsburg & Bento Prado Jr., 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Descartes, René. 1637. Discurso do método. Em: Victor Civita, Descartes.
_____. 1647. Meditações. Em: Victor Civita, Descartes.
Guenancia, Pierre. 1998. L’intelligence du sensible: essai sur le dualismecartésien. Mesnil-sur-l’Estrée: Gallimard.
Slavin, Sean. 2003. Walking as Spiritual Practice: the Pilgrinage to Santiago de Compostela. Body & society 9(3):1-18.
Solnit, Rebecca. 2000. Wanderlust: a history of walking. New York: Penguin.
--Notas--
* Versão final, escrita em 14 de novembro de 2003. Agradeço ao Rogério P. Severo pelos comentários à versão anterior. Aos demais membros do grupo Dadaseyn, à minha namorada, Mariana Balen Fernandes, e à minha mãe, Lúcia Maria Schirmer dos Santos, agradeço pela leitura da versão anterior.
[1] René Descartes, Meditações, Primeira Meditação, p. 86, AT IX-1 14.
[2] Rebecca Solnit, Wanderlust, p. 10. A velocidade de 3 milhas por hora equivale a cerca de 5km/h.
[3] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 4.
[4] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 4.
[5] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 6.
[6] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 6. Ao ler este trecho, minha mãe pediu alguns esclarecimentos, pois lhe pareceu que o peregrino dirige-se para dentro de si mesmo em uma rota paralela ao Caminho, sendo seu ponto e partida os monumentos e outros elementos histórico-sociais, e seu ponto de chegada o si mesmo não-histórico. Expliquei-lhe que se trata menos de ir de uma coisa a outra, mais da ocorrência das duas coisas num único fenômeno humano. A experiência vivida por cada um de nós é um elemento social da própria história, mas o demorar-se em perceber-se, reflexivamente, tendo certa experiência sobre si mesmo, é um fenômeno de fruição, de vivência, e, tomado assim, a-histórico. É claro que, nesta separação entre os fenômenos humanos históricos e a-históricos, estamos sendo dualistas, ou seja, supomos a distinção entre a mente e a matéria. Um exemplo grosseiro do que estamos a dizer é a embriaguez. Ainda que o estar embriagado seja o efeito do álcool no cérebro, a experiência da embriaguez não é nada disso. Mas podemos dar exemplos mais sutis do que estamos a dizer, e para mim não há como não citar o querido Pierre Guenancia neste momento: "Não somos dualistas quando refletimos sobre o fato que a música que nos chega aos ouvidos não ressoa, como música, nas orelhas órgãos do corpo, mas no nosso ser por completo onde, para ele apenas, ela tem a significação de música?" (L’intelligence du sensible, p. 11).
[7] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 6.
[8] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 6.
[9] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 6.
[10] "Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-ei seriamente e com liberdade em destruir em geral todas as minhas antigas opiniões" (René Descartes, Meditações, Primeira Meditação, p. 85, AT IX-1 13, nossos itálicos). Como comentou Rogério P. Severo, na nossa correspondência privada: "a meditação do peregrino é um entregar-se, a de Descartes é um pôr-se em controle".
[11] René Descartes, Discurso do método, Primeira Parte, p. 29, AT VI 2.
[12] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 6.
[13] René Descartes, Meditações.
[14] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 6.
[15] Sean Slavin, Walking as Spiritual Practice, p. 7.

Um comentário:

Cé S. disse...

Ei Flavião, que legauu que tu trouxe de volta à circulação este texto! Gostei muito, mesmo, principalmente porque quero relê-lo, pois acho que mudei de idéia em um ponto.

Abração !

Arquivo do blog