sábado, 5 de junho de 2010



Existem muitas maneiras de entender o ofício do filósofo. Suponho que o entendimento mais comum na nossa época (1990 para cá, digamos) consista em tomar o filósofo como um um pensador profissional, uma espécie de técnico que formula teorias que servem de solução (possível) para problemas filosóficos. Eu creio que essa é uma parte importante da atividade filosófica, mas não o todo.
Desde minhas primeiras leituras de textos filosóficos firmei a convicção que ser filósofo ou ocupar-se com  filosofia é também ser capaz de promover algum tipo de transformação existencial, uma transformação em nossa personalidade ou no modo como vemos nossa própria condição. A atividade filosófica não é apenas uma atividade cerebral ou intelectual de solução de enigmas teóricos. Quando procuramos desvendar conceitos ou temas obscuros como a "beleza", o "bom", a "verdade", a natureza do que "existe", a própria apreensão de nós mesmos, o modo como nos compreendemos, sofre alteração.Por exemplo: se me ponho a pensar no que há, na facilidade com que as coisas desaparecem e no gigantesca teia de preocupações tolas que governam nossa vida (algo que, ainda que fora de moda, pode ser um objeto de estudo da filosofia), posso ser tomado por um sentimento de fragilidade e pequenez, um sentimento útil para aplacar minha intolerância, a negação dos outros, algum sinal de estupidez. Sêneca, nas Cartas a Lucílio:

Vamos, faz o cálculo da tua existência. Conta quanto deste tempo foi tirado para um credor, uma amante, pelo poder, por um cliente. Quanto tempo foi tirado pelas brigas conjugais e por aquelas com empregados, pelo dever das idas e vindas pela cidade. Acrescenta, ainda, as doenças causadas por nossas próprias mãos e também todo o tempo desperdiçado. Verás que tens menos anos do que contas. Perscruta a tua memória: quando atingiste um objetivo? Quantas vezes o dia transcorreu como planejado? Quando mantiveste uma boa aparência, o espírito tranqüilo? O quanto de tua existência não foi retirado pelos sofrimentos sem necessidade, tolos contentamentos, paixões ávidas, conversas inúteis, e quão pouco restou que era teu? Compreenderás que morres cedo’. O que está em causa então? Viveste como se fosses viver para sempre, nunca te ocorreu a tua fragilidade. Não te dás conta de quanto tempo já transcorreu.


Ler e deter-se num texto filosófico assemelha-se, como dizia Sócrates, a levar uma ferroada. Saímos do texto de um modo diferente daquele que entramos. Talvez outros textos (religiosos, científicos, literários) tenham essa propriedade exortativa. Mas na filosofia, mesmo na filosofia mais técnica, arrisco a dizer, a função exortativa é como uma sombra silente.

4 comentários:

Alexandre N. Machado disse...

Flávio, entendo o que queres dizer. Mas pense: não estás tendo uma visão muito estreita do que seja um problema teórico? Tudo depende de como entendemos "teoria", não? O problema aqui é análogo à dicotomia linguagem/mundo presente em algumas filosofias da linguagem, como se a linguagem não fosse algo no mundo. O que tu achas?

Flavio Williges disse...

Eu também entendo o que queres dizer e pensei nisso que colocaste. O que estou tentando sugerir é que um filósofo não deve ser entendido como um geólogo, por exemplo, que durante o dia classifica minerais e à noitinha volta para casa para viver sua vida de homem comum. No entanto, eu suponho que muitos filósofos entendem a si mesmos como geólogos no sentido que coloquei acima. Tentam resolver problemas, como se esses problemas fossem puro objeto de interesse intelectual, sem nenhuma relação consigo mesmos. Acho que a distinção, ainda que vaga, pode ser válida. O que achas?

Alexandre N. Machado disse...

Corremos o risco de entrar numa discussão verbal nesse ponto. Acho que concordamos nos pontos principais. Eu apenas acho que essa visão distorcida que alguns filósofos têm de si mesmos não é fruto de terem uma visão demasiado teórica do seu trabalho, mas de conceberem sua atividade teórica de modo distorcido. Não acho que quem tem uma visão não distorcida da filosofia tenha uma visão menos teórica da mesma. Em ambos os casos a filosofia vai ser uma atividade puramente reflexiva. A diferença vai estar no escopo da reflexão, e o quão profundamente cada um enxerga quando reflete sobre os problemas filosóficos, etc. Que achas?

Flavio Williges disse...

Alexandre,

Filosofia pode ser entendida como uma reflexão que tem consequências atitudinais. Se entendi bem, vc afirma que esse último aspecto é inerente à idéia de reflexão. Se for isso, estou de acordo. Eu estava, em todo caso, enfatizando o aspecto exortativo ou de transformação existencial provocado pela filosofia. Novamente, se isso pode ser subsumido à idéia de uma reflexão teórica, estou de acordo contigo.