domingo, 19 de setembro de 2010

20 de setembro



Meus amigos mais cultos, especialmente os filósofos e historiadores, não gostam muito das comemorações do 20 de setembro, o chamado "Dia do Gaúcho". Eu concordo com isso, em parte. Em parte, pois precisamos separar duas coisas. Em primeiro lugar, existe uma cultura grotesca, preconceituosa (em relação aos não-gauchos), machista, beligerante e ufanista no Rio Grande que merece ser repudiada. Essa parcela dos gaúchos identifica-se em demasia com o tradicionalismo e é conhecida por divulgar e defender uma historiografia artificiosa em torno da Revolução Farroupilha, uma historiografia que guarda compromissos ideológicos incompatíveis com a verdade histórica e com a criação de uma sociedade livre. É essa cultura que tornou-se responsável pela criação de muitos mitos em torno dos heróis farroupilhas, da celebração da revolução de 35 como um evento que exalta a dignidade do homem do Sul, algo bastante discutível pela historiografia mais recente*. É também essa cultura que pretende, por meios institucionais e midiáticos, anular qualquer outra manifestação social e cultural (como, por exemplo, a cultura musical vinculada ao Carnaval, a cultura roqueira, etc) diversa dos ideiais (pouco claros) do gaúcho tradicionalista. Todos os aspectos e traços dessa cultura merecem desprezo e repúdio. Nesse sentido, o dia do gaúcho, na medida que alimenta essa cultura, é um evento lastimável.

No entanto, há outra cultura gáucha, que não pode, é bem verdade, ser inteiramente separada dessa tradição artificiosa que foi criada, que tem produzido reflexos positivos na maneira como os gaúchos se relacionam com aspectos significativos de seu passado e presente. Essa cultura transparece através daquelas pessoas que reconhecem a si mesmas, que significam a si mesmas, seu lugar no mundo, através de categorias que não são alheias a cultura campeira ou gaudéria*. Reconheço essa cultura especialmente na arte do Rio Grande do Sul. A milonga, o chamamé (e boa parte da música dos festivais), a poesia e a literatura regionalista são exemplos de uma cultura gaúcha que se alimenta de elementos próprios, ricos, elementos que são resultado de uma cultura especializada (que tem como tema o vento, a vida no campo, o trato com animais, o fogo e assim por diante) e distintiva em relação a outras partes do Brasil e do mundo. Um claro exemplo do que estou tentando chamar a atenção pode ser encontrado na música de Vitor Ramil (de Ramilonga, especialmente) ou na poesia de Jayme Caetano Braum. Elas representam arte da melhor espécie e uma arte que se identifica com um gaúcho pampeano, com um tipo regional que não é encontrado noutras partes do Brasil. Essa cultura que, repito, não pode ser inteiramente separada dos elementos artificiais do gauchismo tacanho,  pode também estar sendo celebrada no "Dia do Gaúcho" e merece ser cultivada. Vou indicar, abaixo, dois pontos que são, no meu entendimento, relevantes (além dos indícios gerais que ofereci acima) para celebrar o 20 de setembro, sobretudo quando o pensamos vinculado ao segundo sentido que distingui acima do gauchismo.
Primeiro: há um certo sentido de apreço e amor por sua terra natal que percorre a cultura regionalista (eu gostaria de dizer nativista, mas não creio que o termo seja melhor ou mais claro que o qualificativo pejorativo tradicionalista). Considero estranha e perniciosa a possibilidade que brasileiros não mantenham nenhum amor pelo seu país. Assim também me parece perigoso que gaúchos, catarinenses, pernambucanos, goianos etc. não gostem de seu Estado. O amor ao seu Estado e país é uma virtude cívica. Culturas que estimular o anelo regionalista, especialmente aquele anelo que resulta na valorização de um modo especial, porque regional, de dizer a si mesmo (na arte, sobretudo) são positivas, pois carregam consigo um sentido de amor pátrio que é essencial à República.
Além disso, existem dimensões de ênfase no interior de diferentes tradições culturais. No interior de uma certa cultura, como por exemplo, a cultura dos fronteiriços, há certos aspectos que são distintos e marcados em relação a cultura de habitantes do litoral ou de regiões dominadas por filhos de imigrantes (como o vale do Caí ou do Taquari). Essas distinções podem ter elementos valiosos, que não são exprimíveis através de outras linguagens e afetos. Um exemplo disso pode ser a ênfase com que as relações de amor filial, a velhice, a fraqueza, o amor, a solidão aparecem retratadas no interior de culturas distintas. Nesse sentido, culturas distintas possuem modos distintos de significação da velhice, do amor, da paternidade, que são dignas de preservação. Novamente, músicas como "Veterano", imortalizada na voz de Leopoldo Racier e o poema "Mateando" de Jaime são exemplos de uma ênfase que a cultura regionalista dá a certos temas que, por si só, tornam essa cultura digna de ser celebrada. Creio que esses dois aspectos que apontei são suficientes para mostrar minhas razões para aceitar, com galhardia, minha condição de gaúcho, de habitante do extremo-sul do Brasil. Para encerrar, acrescento, abaixo, um link da música, o Bolicho de Cenair Maicá (foto), um dos quatro troncos missioneiros.  Gosto de pensar que no dia do Gaúcho celebramos a memória de Cenair e de outros tantos que fizeram uma história vinculada com a verdadeira liberdade e humanidade. .
http://www.youtube.com/watch?v=LsZoGCxAV4k&feature=related



* eu desconheço inteiramente a literatura crítica em relação a revolução farroupilha, mas sei que existe e lembro, de memória, que as principais teses defendidas nessa literatura afirmam que a revolução farroupilha foi uma revolta de estancieros motivada por interesses econômicos contra o império (que não representava, portanto, verdadeiros anseios de liberdade), que seus líderes eram aristocratas preconceituosos (sobretudo em relação aos combatentes negros); que a paz foi negociada na defesa de interesses dos militares revoltosos; não tratando-se, portanto, de nenhum pacto honroso, como se costuma propalar;

*nem todo Rio Grande é gaudério, é bom se dizer, embora não constitua tarefa fácil precisar o que seria a porção pampeana do Rio Grande. Uma forma de fazê-lo poderia ser apelar para a distinção, própria da geografia, entre território e espaço. 

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom, Flávio. Há muito terreno a ser retomado do espectro pernicioso de nosso tradicionalismo.

Flavio Williges disse...

oi Marcelo. sim, concordo contigo. Depois que entramos numa estrada torta, é difícil voltar. Eu tenho tentado ajudar escrevendo observações que julgo esclarecedoras. Mas a estrutura dos processos culturais e representacionais mostra que o furo é sempre mais embaixo. No simbolismo, é muito mais fácil as pessoas se apegarem a mitos vazios, do que a versões mais esclarecidas de si mesmas e de seu passado.

Abraço

Flavio