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Muitas coisas podem ser feitas com a literatura. Uma das possibilidades que mais me agrada é explorar afinidades filosóficas presentes em textos literários. Não tenho dúvidas que o entendimento das condições segundo as quais uma pergunta filosófica pode ser respondida encontra-se manifesto exemplarmente na literatura. Mas o vínculo entre filosofia e literatura não é o único e talvez nem mesmo seja o mais produtivo. Várias áreas do saber, incluindo as ciências mais duras, andam flertando com escritores malditos, poetas loucos, viciados e outros pirados que abandonaram a estrada comum para ampliar a visão do buraco que nos metemos. Por exemplo: tempos atrás estive participando de um Congresso de Educação Médica na antiga Faculdade de Ciências Médicas de Porto Alegre. Uma das mesas era dedicada às humanidades na área da Saúde. A mesa foi coordenada pela colega do PPG em Filosofia da UFRGS, Marília Espírito Santo, que até então eu não conhecia. Gostei bastante de todos os painelistas, mas chamou-me especialmente a atenção uma palestra sobre como textos literários podem servir para pensar a morte, o cuidado de doentes e aos propósitos de humanização das relações entre médico e paciente. O mote da palestra foi o belo livro A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstoi. Ivan Ilitch era um magistrado que adoeceu: "queixava-se de um gosto estranho na boca e uma sensação desconfortável no lado esquerdo do estômago, mas ninguém chamaria isso de doença" (p.44). Transcrevo uma passagem magistral que trata do ponto de vista do médico e do paciente numa consulta, na premiada tradução de Vera Karam.
Seguiu-se tudo dentro do esperado, como sempre acontece. Houve o habitual período na sala de espera, a atitude importante assumida pelo médico- ele conhecia bem aquele ar de dignidade profissional; ele próprio o adotava no Tribunal-, os exames e as perguntas que exigiam respostas que levavam a conclusões óbvias e obviamente desnecessárias e o olhar grave, que queria dizer: "Deixe tudo conosco e nós resolveremos as coisas, nós sabemos tudo do assunto e podemos resolvê-lo para você como faríamos com qualquer outra pessoa". O procedimento todo era igual ao dos Tribunais. Os ares que ele adotava no Tribunal em benefício do prisioneiro, o médico adotava agora em relação a ele.
O médido disse-lhe que este e aquele sintoma indicavam que isto ou aquilo iam mal com o paciente por dentro, mas se esse diagnóstico não fosse confirmado pelos exames clínicos disto ou daquilo, então chegaremos a esta ou aquela conclusão. Se chegarmos a esta ou aquela conclusão, então....e assim por diante.
Para Ivan Ilitch só importava saber uma coisa: o seu caso era sério ou não era? Mas o médico ignorou essa pergunta tão fora de propósito. Do ponto de vista do médico tratava-se de um detalhe que não merecia ser levado em consideração: o problema realmente era avaliar todas as probabilidades e decidir entre um rim flutuante ou apendicite. Não era uma questão de Ivan Ilitch viver ou morrer, mas de decidir se era rim ou apêndice. [...] A partir da fala do médico, Ivan Ilitch concluiu que as coisas não estavam bem, mas que para o médico e provavelmente para todas as outras pessoas isso não faria a menor diferença, enquanto que para ele era simplesmente terrível. E essa conclusão foi dolorosa, despertando-lhe um grande sentimento de autopiedade, e de amargura em relação ao médico que não se importava nem um pouco com uma questão tão importante.
Mas não disse nada, levantou, colocou o dinheiro da consulta em cima da mesa e falou com um suspiro:
-Nós, os doentes, sem dúvida fazemos muitas vezes perguntas inadequadas. Mas, diga-me, de modo geral, assim por cima, esses sintomas lhe parecem graves ou não?
O médico olhou-o severamente por cima do monóculo, como se dissesse: "Pedimos ao réu que se atenha a responder o que lhe foi perguntado ou serei obrigado a fazer com que se retirem da sala".
- Eu já lhe disse tudo que julgava necessário dizer- respondeu o médico-, os exames devem dar mais detalhes- E indicou-lhe a porta.
TOLSTOI, Leon. A morte de Ivan Ilitch. Tradução de Vera Karam. Porto Alegre: LP&M, 2007, p. 46-47


Estive assistindo uma palestra da filósofa e participante do Programa Saia Justa do GNT, Márcia Tiburi, na Feira do Livro do pequeno munícipio de Vera Cruz, no RS. Lembrava dela dos tempos dos colóquios de Estética do Christian Hamm, em Santa Maria. Ela é muito gentil, camarada e me pareceu bem mais bonita ao vivo do que na TV. Até onde entendi, ela defende a idéia de que a filosofia é uma espécie de conversação, um tipo de troca dialogal onde, num jogo de envio-recepção-apropriação de sentido entre pares, amigos, procuramos desvendar o ser, o que existe, ou seja, a condição humana e a realidade envolvida. Concordo com a idéia, desde que se entenda que o acento seja colocado na natureza da conversão e não tanto no ato de conversar.




