quinta-feira, 18 de março de 2010

Razões para crer em Deus


 Há um mundo sem fim, ó meu irmão, 
e há um Ser inominado, do qual nada se pode dizer.
Ele é conhecido apenas por aquele que chegou a essa região.
Ele é diferente de tudo o que se ouve falar e de que se fala.
Ali não se vê nenhuma forma, nenhum corpo, nenhuma
longitude, nenhuma espessura:
Como poderei dizer-te o que ele é?
Kabir diz: "Ele não pode ser expresso com as palavras da boca; 
dele não se pode escrever no papel;
é como uma pessoa muda que prova uma coisa doce: como
ela poderá explicar-se?" (Rabindranath Tagore, Meditações, p. 102)



Muitos alunos me perguntam por que os filósofos são ateus, não acreditam em Deus. Respondo dizendo que a pergunta é boa e merece ser explorada, mas o pressuposto que ela assume é verdadeiro apenas em parte. Alguns filósofos se autodenominavam ateus. Os mais famosos são Russell e Sartre. Mas se fizermos uma estatística, acredito que os crentes sairiam ganhando. Platão, Aristóteles, Agostinho, Descartes, Pascal e muitos outros acreditavam em Deus. Suponho que a maioria dos filósofos alimentaram essa crença.  Mas que razões bons filósofos poderiam ter para acreditar em Deus, se a filosofia é (num sentido importante) uma investigação sobre nossas crenças, uma investigação sobre as razões que temos para crer naquilo que cremos?
Uma razão possível de ser oferecida está contida na própria pergunta: temos razões para crer em Deus, pois é possível oferecer provas racionais da existência de Deus. Esse caminho foi seguido por muitos filósofos do passado. Ele não está muito em voga hoje em dia, mas, se não me engano, o lógico contemporâneo Kurt Gödel apresentou uma prova dessa natureza.
Uma segunda possibilidade consiste em aceitar que a ciência apresenta evidências a favor da hipótese da existência de algo que poderia ser chamado de Deus. Nesse caso, os filósofos acreditariam em Deus por confiar nos mecanismos de confirmação de crenças aceitos pela ciências naturais ou experimentais. Testes envolvendo experiências de quase-morte e outras evidências que, aos poucos, cientistas estão pesquisando fariam parte dessa estratégia de fornecimento de razões.
Uma outra razão deriva de uma forma alternativa de entendimento da natureza da filosofia. Nem todos filósofos concordam que filosofia seja apenas uma tentativa tenaz de fornecer fundamentos racionais para nossas crenças fundamentais.Esses filósofos podem ser chamados de irracionalistas. Imagino que eu seja, em muitos momentos, um filósofo desse tipo. Eu acredito em Deus por uma confiança forte, que não sou capaz de justificar racionalmente. Eu acredito cegamente que o universo inteiro e minha vida dentro dele é regulado por um princípio de amor e bem. Eu poderia dizer, de maneira um tanto platônica, que a realidade é o bem. E isso é o que entendo por Deus. Se algum dos meus alunos me perguntar que razões eu tenho para dizer essas coisas (que, em geral, não digo), a única coisa que sou capaz de responder é que sinto isso e que minha vida e a vida de tudo quanto existe seria melhor se mais pessoas pensassem assim. 


13 comentários:

Cé S. disse...

Ei Flavião,

simpatizo com a visão de Karen Armstrong, para quem falar em *razão* para *crer* em deus é sair do campo da religião, pois religião é prática e ato, tal como a dança, e nada tem a ver com crenças e razões. Tipo, para ela, quem apoia a religião em argumentos tá cometendo uma espécie de erro categorial, tal como quem tenta usar um garfo para pegar uma música.

O filósofo Simon Blackburn comentou o trabalho dela.

Giovani Felice disse...

Oi Flávio e César

Eu também simpatizo com a posição de KA, que "religião" é essencialmente prática. O que eu discordo (se é que estou a discordar ...) é o seguinte: quem disse que,p.ex., ao oferecer (ou pedir) provas da existência de Deus alguém está tratando de "religião"? Eu acho que em alguns casos em que os filósofos apresentam[ram] provas dessa espécie(e vou ficar com o exemplo das provas da existência de Deus, que me parece mais relevante aqui)sequer está se tratando de uma "ligação com Deus"... Isto é, um filósofo (mas também poderia não ser um filósofo) pode estar convencido de uma prova da existência de Deus e não estar convencido de que esse seja o "mecanismo" de se ligar com Deus; que é pela dança(ou pelo "ópio", ou pela oração, etc) que sua ligação com Deus de dá. Que a esmagadora maioria dos filósofos que apresentaram provas para a existência de Deus tenha, entretanto, vínculos com alguma religião, e que seus argumentos em favor da existência de Deus possam ser usados de uma ou outra maneira por alguma religião, eu acho que é outra história. Em outra palavras, eu acho que os filósofos, mesmo cometendo outros erros categoriais aos borbotões, estão bem conscientes dessa distinção de KA...
Agora suponham um ritual r de ligação com Deus. Terminado r, pergunta-se: 'por que estava fazendo r?' Suponham que a resposta seja: 'para me conectar com a divindade.' Agora imagine a seguinte pergunta, na sequência:'você acredita nessa divindade?' Assim, parece que r pressupõe crença -- ou descrença...

Um grande abraço.

Cé S. disse...

Giovani!

Discordo do final! Cito para simplificar:

«Agora suponham um ritual r de ligação com Deus. Terminado r, pergunta-se: 'por que estava fazendo r?' Suponham que a resposta seja: 'para me conectar com a divindade.' Agora imagine a seguinte pergunta, na sequência:'você acredita nessa divindade?' Assim, parece que r pressupõe crença -- ou descrença...»

Quem perguntasse isso simplesmente não entendeu nada do que tava fazendo. E, pra esclarecer, nem todo entendimento requer crença. Por exemplo, entender um martelo é sair fixando pregos por aí - o que não requer descrição ou crença alguma, mas apenas alguma habilidade manual.

Abração!! A todos, é claro!!! :D

José Eduardo Porcher disse...

Caros,

Primeiro uma nota estatística. A pesquisa feita pelo PhilPapers com filósofos de língua inglesa (que certamente respondem hoje pela maior parte da população de filósofos) teve um resultado previsível quanto a questão sobre a crença em Deus:

God: theism or atheism?
atheism 678 / 931 (72.8%)
theism 136 / 931 (14.6%)
Other 117 / 931 (12.5%)

Eu fui um que votou em "Other", e fiquei surpreso que o "Other" não ganhou (agnosticism, anyone?) Entre cientistas eu esperaria que ateísmo vencesse, mas não entre quem reflete um pouco mais.

Com o perdão de poder estar dizendo o óbvio: Não há dúvida alguma que os filósofos, como todo mundo, foram crentes em Deus até Darwin encontrar aceitação. Desde então, eu me arriscaria a dizer, o número de crentes está em declínio mais ou menos constante.

Antes de Armstrong acho que, no Ocidente, Pascal e Kant acertaram em separar completamente crença racional e crença religiosa -- o que, é claro, não quer dizer que crença religiosa é irracional, apenas fora do escopo da investigação racional. O coração tem razões que a própria razão desconhece. Para falarmos delas, temos que abandonar a razão para dar lugar a fé. Kierkegaard também teve a sensibilidade de perceber que religião tem mais a ver com a prática do que a teoria, como Wittgenstein nota em uma bela passagem de Culture and Value:

“I believe that one of the things Christianity says is that sound doctrines are all useless. They have to change your life. (Or the direction of your life.)…Wisdom is passionless. But faith by contrast is what Kierkegaard calls a passion” (53e).

Abraços!

Cé S. disse...

Ei Doktorr Willigzidum!

Acho que você estava pensando em Georg Cantor, ao invés de Kurt Gödel.

Fácil confundir um com o outro, pois partilham muitos predicados: foram lógicos, germânicos e loucos!

Abração!

José Eduardo Porcher disse...

Ei Cé,

O Gödel de fato circulou uma prova ontológica entre seus amigos durante um tempo. http://plato.stanford.edu/entries/ontological-arguments/#GodOntArg

Abraços,

Porcher

Cé S. disse...

Porra, este Gödel, também, se meteu em cada coisa....

Valeu, Zé!

Giovani Felice disse...

César

"Quem perguntasse isso simplesmente não entendeu nada do que tava fazendo."
Por quê? E antes dessa pergunta, "isso" o quê? Suponho que "isso" esteja fazendo referência a segunda pergunta. Então, por quê? O teu esclarecimento, por enquanto,não me esclareceu muito...;-)
Uma possível resposta a minha segunda questão:'claro que acredito, senão não estaria fazendo r!' Outra possível resposta:'por fazer r é que espero vir a acreditar.' E há outras possíveis respostas.
Seja como for, o fato é que além de glutão és um baita de um heiddegeriano!:-)

Um grande abraço.

Cé S. disse...

Exatamente, Giovani! Há várias maneiras de entender, assim como há várias maneiras de encher a barriga hahaha

Abração!

Giovani Felice disse...

César

'Há várias maneiras de entender, assim como há várias maneiras de encher a barriga' :-)))

"Tamo" patifando o blog do nosso querido Flávio.

Abração.

Eros disse...

Apesar de ser mais ou menos consensual entre filósofos que razões são crenças, isto não é em absoluto trivial e óbvio.

Sendo assim, se (1) há razões não-doxásticas (Pollock) e (2) se há analogamente à experiência perceptiva algo que podemos chamar de experiência religiosa ou mística (Alston), então faz absolutamente todo o sentido falar em razões para crer em Deus.

Flavio Williges disse...

Oi amigos,
Obrigado pelos comentários. Vou comentar as observações pelos nomes:
César: quanto ao teu primeiro comentário, gostaria de dizer que eu considero que podemos ter uma vida religiosa (com práticas, rituais, etc) e pensar sobre o sentido da mesma e das crenças que a compõem. Não sei, por exemplo, como seria possível ser religioso sem, em algum momento, alimentar certas crenças e perguntar se essas crenças fazem sentido e qual seu sentido. Eu não conheço o trabalho de Karen Armstrong, mas se ela defende que ser religioso é só viver a religião e não pensar em temas religiosos, eu discordo dela. Ainda, depois de pensar em Deus e outros assuntos vinculados à religião, não significa que encontraremos uma teoria para justificar nossas crenças. Pode ser que o resultado seja a descoberta de que não temos razões para oferecer, que simplesmente cremos e a vida nos parece boa assim. Eu procurei colocar essa possibilidade: que minha experiência religiosa é mais subjetiva e emocional e menos racional (no sentido de depender de razões). Mas eu reconheço que um filósofo racionalista poderia querer provas para crer e um naturalista evidências empíricas.
Giovani: Concordo. Provas da existência de Deus são assunto de filosofia da religião, de quem está pensando sobre religião. E as investigações filosóficas sobre religião podem ser um estímulo para a religião, embora as duas coisas não estejam necessariamente vinculadas. Ouvi falar de um professor que dá aulas sobre epistemologia da crença religiosa, pois muitas pessoas se interessam e participam vivamente. O interesse principal dele, entretanto, é epistemologia.Em suma, é possível falar de Deus sem fazer religião, como vc defende.
Porcher: legal as informações estatísticas que apresentas e também teu comentário de Wittgenstein. Eu lamento que a maioria das pessoas que participaram da pesquisa sejam ateus. Eu acho que os ateus e os agnósticos como vc estão enganados. Existe qualquer coisa no universo que pode ser chamada de Deus. Sobre a separação entre crença racional e crença religiosa, não sei se concordo contigo. Sobre Pascal, em particular, tenho dúvidas que ele tenha defendido uma separação. mas não conheço Pascal suficientemente para dizer isso. Eu desconfio, em todo caso, que ele tenha uma posição parecida com a de Agostinho, pois ele foi seguidor de Jansenius, que era um agostinista. Olha só essa passagem que eu encontrei num comentário de Jean Pepin sobre Agostinho: "a fé, enquanto adesão, reforça sempre o conhecimento racional: não se sabe tudo o que se crê, mas crê-se em tudo o que se sabe. Inversamente, na própria religião não é só a fé que está em causa; esta é purificadora e protréptica, mas transitória e destinada a ser ultrapassada, pois conduz à compreensão; depois de Sâo Paulo e antes de Malembranche, Agostinho descobre que a fé passará, mas a inteligência subsistirá eternamente. Prolongada pela razão, a fé é também preparada pela razão; com efeito, é pela razão que analiso o papel da fé; além disso, a fé inicial admite muito bem o concurso racional. ...é serpre preciso crer para compreender e compreender para crer". Escrevi isso só para dizer que talvez teoria e prática aqui sejam alimentadas mutuamente. Eu acho que o ponto principal da passagem do Wit. é enfatizar é que conhecer a doutrina cristã não é o essencial para ser cristão. O essencial é a atitude, o modo de vida cristão.
Eros: faz tempo que penso em ler o texto do Alston. Teu comentário reforçou meu interesse.

Geraldo Brito (Dado) disse...

Interessante. Parabéns pelo blog!