domingo, 12 de junho de 2016









AMOR E ESQUECIMENTO


Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e mal amar, amar, desamar, amar? 
sempre, e até de olhos vidrados, amar? 
(Carlos Drummond de Andrade) 



Em nossos devaneios secretos é comum formarmos uma imagem da vida em que a idéia de “realização plena” no trabalho, no amor, na família, etc. seria algo como um estado de paz e felicidade permanente; nossa imagem ideal do homem é como uma estrela cuja luz cintilante irradia sem cessar. Mas isso não passa de uma idealização. Nossos melhores momentos são tênues e fugazes. Em todas as porções da vida nossa grandeza é episódica, se manifesta em instantes; no restante do tempo, o que temos é um lote de problemas, diferenças, temores e dificuldades para lidar. 
É talvez pensando em nossas fantasias de plenitude amorosa mais recônditas que a grande maioria das histórias de amor que vemos no cinema, quando não são perfeitas em tudo, aparecem envoltas numa atmosfera ideal, irreal, que pouco ou nada ensinam sobre o amor real, cotidiano, e seus revezes. Um romance onde o sexo, os gostos e manias dos amantes encaixam perfeitamente anima e dá vida às nossas ilusões. O amor perfeito, no entanto, é uma idéia que não ajuda a viver. 
Brilho Eterno de uma mente sem lembranças é uma prova cabal de que uma história de amor repete os gestos que traduzem a história inteira de nossa vida, sem maculá-la, sem torná-la pobre ou diminuída. Embora pouco ou nenhum apelo seja feito ao eterno, às “almas gêmeas”, o amor que veste as cores do cotidiano do roteirista Charles Kaufman parece tão belo e rico quanto aquele que figura em nossas fantasias de perfeição. Ele aparece ali como algo simples, sem ser banal. É assim como correr e brincar; revela-se ficando abraçados num canto qualquer ou trocando carícias e segredinhos embaixo do cobertor.
A promessa de Brilho Eterno não é a da salvação, da redenção no paraíso eterno dos amantes; é a promessa de uma felicidade sutil, que implica o aprendizado e aceitação de nossos limites, o reconhecimento e o cuidado com o outro. Pois é especialmente quando uma história de amor termina, quando a separação arranca o solo que sustenta nossos pés, que o lugar do “outro”, daquele que não sou eu, mostra toda sua ameaça e perigo. Esse imarcescível “eu” que já não me diz mais respeito caminha conosco na forma incômoda da lembrança. A lembrança é como um hóspede que vive em nossa casa. Quando sua presença não é mais querida, ela é causa de sofrimento, passa a nos perseguir, rouba nosso centro e bagunça inteiramente o sentido de nossa narrativa individual. É por isso que no filme esquecer se traduz em apagar todas as imagens significativas de dependência, de ligação com o outro, destruindo presentes, imagens, sinais; destruindo o reconhecimento de meu “eu” partilhado. 
A cura da lembrança é o esquecimento. O esquecimento é o não-lugar, o exílio daquilo que não pode mais ser parte da vida. Só o artista do esquecimento é capaz de encontrar um lugar em que a lembrança dolorosa desapareça sem deixar vestígios. O esquecimento é, nesse sentido, uma importante virtude e é por isso que Nietzsche não se cansava de dizer: “divina é a arte de esquecer”. Mas como descobrir esse segredo búdico? Como controlar e, principalmente, apagar nossas memórias mais tristes? 
Em tempos de tecnologia e de vida difícil, uma forma eficaz de não reconhecer nosso vínculo com outras pessoas poderia ser simplesmente acionar uma tecla do computador e “deletar” de nossa memória tudo aquilo que queremos esquecer. Com essa metáfora, Kaufmann captura de maneira excelente o onipresente papel da ciência e o lento processo de “artificialização” da satisfação com a condição humana que vem se calcificando no mundo contemporâneo. A “droga que cura e acalma” é, no filme, um programa de computador que mapeia os setores do cérebro que armazenam as memórias daqueles que um dia amamos (e já não queremos mais lembrar) e depois as apaga uma a uma.  Um processo que, metaforicamente, repete a fila nas farmácias em busca do Viagra, do Prozac, da fórmula do emagrecimento, do “anti” qualquer coisa que lembre que estamos vivos, que temos sentimentos que não sabemos bem como lidar e um corpo que envelhece, pode ficar doente e morrer. A mesma “ciência neutra” que faz milagres sobre o corpo e transforma cirurgiões em “celebridades”, dá ao cientista de Brilho Eterno o estatuto de  um pequeno Deus que distribui as sementes de uma vida feliz. O luto da perda já não existe mais!   
No entanto, toda promessa de felicidade milagrosa seja pela ciência, seja por qualquer outro meio, tem um lado sujo. Viver sem memórias, sem lembranças, sem nossa história e a história de nossos erros pode ser confortante, mas mostra o quão frios e desumanos podemos nos tornar quando aliamos nosso egoísmo às maravilhas da tecnologia. Por trás da vigorosa dialética do amor e do esquecimento, Kaufman nos confronta com uma questão radical: alguém que pode conceber, desenvolver e deixar os outros destruírem totalmente a memória de outros seres humanos é ainda um homem? De modo similar aos personagens da fábula de Stevenson, Dr. Jekyll and Mr. Hyde, a “atitude científica” de fazer desaparecer as memórias que constituem parte essencial de nossa identidade autobiográfica e do lugar do outro em nossas vidas pode gerar formas de monstruosidade, como do médico que fomenta a paixão de sua jovem e ingênua secretária, para depois apagá-la tranqüilamente, ou do assistente que rouba calcinhas e segredos de suas pacientes em proveito próprio. 
No final fica uma lição importante: o amor e seu fim não-sublime na perda pode ser causa de sofrimento, pode deixar seqüelas, mas toda a dor desaparece quando acompanhado de um encontro com o outro, como se fosse um encontro consigo mesmo. Mesmo na perda, o amor não tem nenhum parentesco com a anulação daquilo que um dia amamos; saber amar significa, como na poesia de Drummond, “amar, depois de perder”. Assim, despido de exigências e temores, o amor pode surgir alegre e poeticamente vivo, anunciador de uma cultura onde a mitologia da eternidade é substituída por uma mitologia que encontra satisfação na condição humana, que reconhece plenitude no amor imperfeito, decaído (o único que realmente conhecemos) e aceita a memória pessoal do sofrimento na separação, sem a violenta necessidade de assassinar o outro ou dissipá-lo de nossas vidas. 
 Flavio Williges, Santa Cruz do Sul, dezembro  de 2004. 

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