Depois de Heródoto Barbeiro, demitido por questionar o candidato Serra sobre o preço dos pedágios no Estado de São Paulo em entrevista no Rodaviva, agora foi a psicanalista Maria Rita Kehl que perdeu o emprego. A notícia é do Blog Caderno Ensaios:cadernoensaios.wordpress.com
Leio estarrecido que a psicanalista
Maria Rita Kehl foi demitida sumariamente do Estadão por causa do artigo
transcrito abaixo. Ela começou a escrever no jornal no início deste ano
e, nesse pouco tempo, conseguiu produzir algumas ideias interessantes
que revelavam uma sensibilidade excepcional.
Recordo que é tanto material para
darmos conta nas nossas leituras diárias, que deixamos escapar um ou
outro material significativo. O que fazer? Apenas lamentar o fato de
que ignorei esse texto notável, pela sua contundência e clareza. Nele
não há meias medidas, tampouco é agressivo ou pernóstico.
Embora um tanto tardio, reproduzo somente agora como prova da minha profunda admiração e solidariedade.
Por Maria Rita Kehl
Este jornal teve uma atitude que
considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na
presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em
suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está
acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo
que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas,
transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém.
Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até
que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter
sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é
maquiada, mas na internet o jogo é duro.
Se o povão das chamadas classes D e E –
os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse
acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de
mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao
leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas
sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto
quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política.
Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de
bolsa-esmola.
Uma dessas correntes chegou à minha
caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia
feita por “uma prima” do autor, residente em Fortaleza. A denunciante,
indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua
cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de
porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego
preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A
que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente.
Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial
tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas
regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha
questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital
cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para
os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário
oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo.
R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do
governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los
na escola.
Outra denúncia indignada que corre pela
internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os
parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do
dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor
imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no
assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os
dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a
bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora
comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também
começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que,
nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito
surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se
quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar
empregos. O voto da turma da “esmolinha” é político e revela
consciência de classe recém-adquirida.
O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao
contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor.
Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos
de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem
consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem
aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da
Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa
de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano
tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma
diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos
mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam
cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de “acumulação primitiva de
democracia”.
Mas parece que o voto dessa gente ainda
desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível
observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é
claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe
escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em
conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de
supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País.
Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela
elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha
chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão
inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.
Agora que os mais pobres conseguiram
levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das
relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo
interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando,
pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que
desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se
consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus
votos.
Fonte: O Estado de São Paulo
Nota do Caderno ENSAiOS: Lemos hoje pela manhã a seguinte nota no Luis Nassif: “O jornalista Xico Sá @xicosa disse esta noite para seus 28,600 seguidores no Twitter que ‘o Estadao nao demitiu Maria Rita Kehl mas exige q ela nao escreva mais sobre política. Só psicanálise’. Embaixo um comentário de um internauta rasga com perfeição a lógica da nossa imprensa: “UÉ, não é o estadão que só fica escrevendo que está sob censura? Quando é um dos seus jornalistas, que escreve uma matéria a favor de Lula, ele demite? Adivinha quem mandou demitir?”
Nota do Caminho do Filósofo: O jornalista Xico Sá está enganado. Maria Rita foi realmente demitida, conforme ela informou em entrevista ao jornalista Bob Fernandes do Portal de Notícias Terra. Veja a entrevista na íntegra aqui
Um comentário:
Quando li o texto no sábado, até pensei que ela pegou leve, justamente por não atingir o jornal. E pensar que teve gente que elogiou a postura do Estadão em abrir o voto...
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