A personalidade, escreveu o filósofo Mangabeira Unger, sofre a ação de duas forças de igual proporção: uma força de atração pelos outros, que nos faz buscar aceitação e reconhecimento fora de nós, e uma força de repulsa, de retraimento diante da constante ameaça de rejeição pelos outros. É difícil imaginar que a política eleitoral possa seguir as intuições de Mangabeira sobre a personalidade; afinal, nas democracias representativas, agentes políticos figuram num espaço de manobra amplo e abstrato quando comparado com as tensões da vida individual. Talvez a melhor psicologia para entender vínculos de pessoas com atores políticos, especialmente candidatos, seja a psicologia primitiva das relações filiais, da expectativa por um qualquer fio de proteção num mundo cada vez mais desumano e triste. É dificil saber. Em todo caso, eu aposto que uma porção de psicologia familiar está na base daquilo que nos faz sentir atraídos, cativados, estreitados por um vínculo de amor e fé nos nossos candidatos. Do mesmo modo que confiamos no nosso pai, votar num candidato significa vê-lo como um lugar onde depositamos nossas muitas esperanças de justiça, felicidade, prosperidade e amor. Em muitos sentidos, é essa expectativa que tenho em relação a eleição de Dilma.
Mas, é preciso lembrar, psicologias de proteção nos transformam em seres infantis. Quando crescemos, descobrimos a vida e também nossos pais. E essa experiência, no mais das vezes, tem um sabor de decepção. Aprendemos isso na primeira eleição de Lula. Milhares de pessoas foram a Brasília para assistir sua posse, pois Lula representava um sonho de igualdade, justiça e esperança num país que foi, através dos séculos, explorado e impedido de ser uma grande nação. Eu também queria estar lá e lamentei por não fazer parte da festa. Queria estar próximo daquele sorriso leve e humano que via estampado na televisão. Mas então vieram as denúncias do mensalão e uma boa parte do Brasil ficou órfão do seu sonho de grandeza ética e política. A notícia foi tão triste quanto uma morte ou um amor que termina.
Crescer, viver uma vida adulta, significa conviver com a morte, com a perda. Seria melhor um governo sem nenhum caso de corrupção. Mas crescemos, literalmente, reconhecendo que o PT e o governo Lula não estavam imunes a erros. O governo Lula nos deu um susto, mas não foi, como disse o Frei Sérgio Görgen, retorcido pelos ferros do poder. O próprio Lula ergueu, com firmeza e com atenção voltada às pessoas que mais precisam, seu governo e fez o Brasil se aproximar mais da idéia de nação justa e próspera que tanto sonhamos. Hoje ele é aprovado por 80 % dos brasileiros. Esses números mostram que as feridas da vida podem ser curadas.
Estamos na reta final da eleição mais importante da história brasileira. Eu poderia votar na Dilma por identificação infantil ou por uma representação madura e adulta da experiência política, com a mente purgada dos excessos de inocência que alimentei em relação ao PT no passado. Eu estaria batizado em relação aos erros de um futuro governo petista. Mas isso tudo me parece racionalização excessiva. Confio mais no instinto, o instinto dos pequenos detalhes. E cada detalhe da vida da Dilma me faz admirá-la mais e mais. Nesse sentido, mais do que psicologia, creio que nossos votos seguem um caminho de identificação anterior a qualquer processo simbólico, verificável pela psicologia. É bem provável que nossas crenças políticas sejam movidas por aquilo que vemos nos olhos, no corpo e no rosto dos homens públicos. Pelo padrão de meus instintos, Serra cheira muito mal, é ranzinza, desleal e tem jeito de ser malvado com as pessoas mais simples. Seu jeito de falar e olhar mostra isso.
Lula é um líder que cuida, brinca e consegue mandar. Embora seja mais séria, Dilma parece com Lula. É firme, mas também sabe cuidar. Descobri isso quando vi seu primeiro programa eleitoral. Ela dizia que encontrou uma menina que pedia um trocado na porta de sua casa e, como só tinha uma nota de dinheiro, rasgou-a para que ela ficasse com a metade. Fiquei incrédulo. Coisa de marqueteiro de campanha, pensei. Mas não era. Ontem, quando um amigo me contou como a conheceu, descobri que não era. E essa descoberta foi, para mim, a maior das revelações. Sempre imaginei que alguém que apanhou na cadeia viveria com o coração torturado, fechado para o mundo, com ódio e rancor. A Dilma passou por isso, mas não sufocou sua veia de amor. Vejo em seus olhos indignação diante da injustiça, mas não vejo ódio. E a pequena história que vou contar a seguir é prova disso.
Como todo mundo sabe, Dilma foi diretora ou presidente da FEE (Fundação de Economia e Estatística do RS) no governo de Collares do PDT. Nessa época, ela trabalhou com a mãe de meu colega e amigo Rogério Severo. Um dia Rogério foi procurar sua mãe na Fundação. Fazia muito calor e, enquanto aguardava na entrada, uma mulher muito pobre pediu para o guarda deixá-la ficar no hall do prédio, para tomar água e ficar no ar fresquinho. A cena estranha de uma maltrapilha na entrada do prédio era notada por todas as pessoas que passavam. Apesar da estranheza, ninguém conseguiu ter sensibilidade de notar o que poderia ser feito, se ela precisava de ajuda ou algo assim. Nesse intervalo, Dilma desceu pelo elevador. Enquanto Rogério me contava a história, fiquei imaginando o que a Dilma faria. Uma das possibilidades, na verdade a primeira que me ocorreu, foi que ela mandaria o guarda retirá-la do prédio. Afinal, ela era diretora da Fundação e poderia não gostar de ver uma maltrapilha na porta de seu prédio.
Quando passou por ela, com apenas um rápido olhar, Dilma entendeu o que estava acontecendo. Ela percebeu que a mulher estava sem dinheiro e com fome; abriu sua bolsa, deu dois vales-refeição para ela, mostrou um restaurante e pediu que ela buscasse algo para comer. Tudo isso aconteceu numa época em que ela não era candidata a nada.
Dilma tem bom coração. Esse é um pequeno detalhe. Posso estar enganado, mas me parece que alguns detalhes fazem toda a diferença!
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