domingo, 31 de agosto de 2008


Muitas coisas podem ser feitas com a literatura. Uma das possibilidades que mais me agrada é explorar afinidades filosóficas presentes em textos literários. Não tenho dúvidas que o entendimento das condições segundo as quais uma pergunta filosófica pode ser respondida encontra-se manifesto exemplarmente na literatura. Mas o vínculo entre filosofia e literatura não é o único e talvez nem mesmo seja o mais produtivo. Várias áreas do saber, incluindo as ciências mais duras, andam flertando com escritores malditos, poetas loucos, viciados e outros pirados que abandonaram a estrada comum para ampliar a visão do buraco que nos metemos. Por exemplo: tempos atrás estive participando de um Congresso de Educação Médica na antiga Faculdade de Ciências Médicas de Porto Alegre. Uma das mesas era dedicada às humanidades na área da Saúde. A mesa foi coordenada pela colega do PPG em Filosofia da UFRGS, Marília Espírito Santo, que até então eu não conhecia. Gostei bastante de todos os painelistas, mas chamou-me especialmente a atenção uma palestra sobre como textos literários podem servir para pensar a morte, o cuidado de doentes e aos propósitos de humanização das relações entre médico e paciente. O mote da palestra foi o belo livro A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstoi. Ivan Ilitch era um magistrado que adoeceu: "queixava-se de um gosto estranho na boca e uma sensação desconfortável no lado esquerdo do estômago, mas ninguém chamaria isso de doença" (p.44). Transcrevo uma passagem magistral que trata do ponto de vista do médico e do paciente numa consulta, na premiada tradução de Vera Karam.

Seguiu-se tudo dentro do esperado, como sempre acontece. Houve o habitual período na sala de espera, a atitude importante assumida pelo médico- ele conhecia bem aquele ar de dignidade profissional; ele próprio o adotava no Tribunal-, os exames e as perguntas que exigiam respostas que levavam a conclusões óbvias e obviamente desnecessárias e o olhar grave, que queria dizer: "Deixe tudo conosco e nós resolveremos as coisas, nós sabemos tudo do assunto e podemos resolvê-lo para você como faríamos com qualquer outra pessoa". O procedimento todo era igual ao dos Tribunais. Os ares que ele adotava no Tribunal em benefício do prisioneiro, o médico adotava agora em relação a ele.
O médido disse-lhe que este e aquele sintoma indicavam que isto ou aquilo iam mal com o paciente por dentro, mas se esse diagnóstico não fosse confirmado pelos exames clínicos disto ou daquilo, então chegaremos a esta ou aquela conclusão. Se chegarmos a esta ou aquela conclusão, então....e assim por diante.

Para Ivan Ilitch só importava saber uma coisa: o seu caso era sério ou não era? Mas o médico ignorou essa pergunta tão fora de propósito. Do ponto de vista do médico tratava-se de um detalhe que não merecia ser levado em consideração: o problema realmente era avaliar todas as probabilidades e decidir entre um rim flutuante ou apendicite. Não era uma questão de Ivan Ilitch viver ou morrer, mas de decidir se era rim ou apêndice. [...] A partir da fala do médico, Ivan Ilitch concluiu que as coisas não estavam bem, mas que para o médico e provavelmente para todas as outras pessoas isso não faria a menor diferença, enquanto que para ele era simplesmente terrível. E essa conclusão foi dolorosa, despertando-lhe um grande sentimento de autopiedade, e de amargura em relação ao médico que não se importava nem um pouco com uma questão tão importante.
Mas não disse nada, levantou, colocou o dinheiro da consulta em cima da mesa e falou com um suspiro:
-Nós, os doentes, sem dúvida fazemos muitas vezes perguntas inadequadas. Mas, diga-me, de modo geral, assim por cima, esses sintomas lhe parecem graves ou não?

O médico olhou-o severamente por cima do monóculo, como se dissesse: "Pedimos ao réu que se atenha a responder o que lhe foi perguntado ou serei obrigado a fazer com que se retirem da sala".
- Eu já lhe disse tudo que julgava necessário dizer- respondeu o médico-, os exames devem dar mais detalhes- E indicou-lhe a porta.

TOLSTOI, Leon. A morte de Ivan Ilitch. Tradução de Vera Karam. Porto Alegre: LP&M, 2007, p. 46-47

terça-feira, 26 de agosto de 2008


EPILOGO

I

O sol, já mais suave, brilha claro no céu ligeiro.
As rosas do jardim, sacudidas por um vento
De outono, balançam ritmicamente.
A atmosfera oferece beijos fraternos.

Já abandonou a Natureza seu trono
De esplendor, de ironia e serenidade:
Clemente se mostra e no vasto espaço dourado
Dirige-se ao homem, seu súdito perverso e rebelde.

Com o pano de seu abrigo, estrelado pela imensa abóboda,
Concorda em enxugar o suor de nossas frontes;
Sua alma eterna e sua imortal silhueta dão calma
E vigor a nossos corações lânguidos e ávidos.

O fresco balançar de mil ramos envelhecidos
E o amplo horizonte com difusos cantos,
Tudo, inclusive alegres bandos de pássaros e nuvens,
Tudo, assim, consola e libera. É hora de pensar.

Paul Verlaine

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Uma passagem curiosa de Rousseau sobre a preguiça. Está no blog do Antonio Cicero

É inconcebível a que ponto o homem é naturalmente preguiçoso. Dir-se-ia que ele só vive para dormir, vegetar, ficar imóvel; ele mal consegue se dispor a fazer os movimentos necessários para se impedir de morrer de fome. Nada mantém tanto os selvagens no amor do seu estado que essa deliciosa indolência. As paixões que tornam o homem inquieto, previdente, ativo, só nascem na sociedade. Nada fazer é a primeira e a mais forte paixão do homem, depois da de se conservar. Olhando-se bem, vê-se que, mesmo entre nós, é para chegar ao repouso que cada qual trabalha; é a própria preguiça que nos torna laboriosos.


De: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Essai sur l'origine des langues. Paris: Aubier-Montaigne, 1974, p.129.

sábado, 23 de agosto de 2008


Estive assistindo uma palestra da filósofa e participante do Programa Saia Justa do GNT, Márcia Tiburi, na Feira do Livro do pequeno munícipio de Vera Cruz, no RS. Lembrava dela dos tempos dos colóquios de Estética do Christian Hamm, em Santa Maria. Ela é muito gentil, camarada e me pareceu bem mais bonita ao vivo do que na TV. Até onde entendi, ela defende a idéia de que a filosofia é uma espécie de conversação, um tipo de troca dialogal onde, num jogo de envio-recepção-apropriação de sentido entre pares, amigos, procuramos desvendar o ser, o que existe, ou seja, a condição humana e a realidade envolvida. Concordo com a idéia, desde que se entenda que o acento seja colocado na natureza da conversão e não tanto no ato de conversar.

Afora isso, simpatizei com a idéia de que os filósofos têm uma importante contribuição a dar no espaço público para criar as condições para uma conversação qualificada, menos definida e mais aberta, digamos, das nossas questões. Ela recomenda que nos intrometamos, que não tenhamos vergonha de nos mostrar no universo que existe fora dos muros da Academia, onde esse trabalho de conversação ainda está por ser feito. Bacana!

quinta-feira, 21 de agosto de 2008


Olhei o horário de propaganda eleitoral gratuita ontem. Acho que os políticos de um modo geral e, em particular, os marqueteiros, andam precisando tomar um pouco de ar fresco, ver as gentes que circulam no mundo lá fora, o mundo real que existe além do universo que criaram para si. Estou me referindo à tendência (que não sei precisar como surgiu) de fazer aqueles filminhos da vida em família. É bem verdade que a familia nuclear talvez ainda seja predominante, mas nada me convence que colocar uma mãe e um pai rodeado de filhos no horário político não seja mais do que um mero jogo de cena. Não penso diretamente na hipocrisia e no veneno que se esconde no seio da família, um veneno eternizado pelo belíssimo "Parenti Serpenti" do Mario Monicelli.
O que me importa mesmo é mostrar que um pequeno senso de realidade é suficiente para reconhecer que o conceito de família vem sofrendo mutações cada vez mais frequentes, que, no plano dos papéis, o centro das atenções no lar não são os pais, mas a televisão e, mais recentemente, o computador conectado à internet.

Do ponto de vista da identidade moral e do cuidado, a velha imagem dos pais que acompanham de perto a vida dos filhos tornou-se um símbolo esvaziado. As mães de hoje não lembram nem um pouco a velha imagem da dona de casa feliz, rodeada de eletrodomésticos, bolo quente e filhos gordinhos. Na esquizofrenia moderna, ter uma família, antes de ser um sonho cor-de-rosa, significa acordar cedo, tendo que se sujeitar a andar de ônibus, trabalhar bastante, comer em restaurantes, dormir mal. É só quando sobra tempo que extraímos um ou outro prazer do convívio com os filhos e amigos. Os filhos, portanto, são o que temos de menos, o que ficamos devendo, supondo que tenhamos a fibra para buscar o melhor para eles, pois essa fibra nem todos têm. Exagero? Pergunte a si mesmo em que medida você conhece os desejos e temores de seu filho! Em geral, não sabemos nem dos nossos. "A vida é de lascar", disse Márcia Tiburi numa palestra em Vera Cruz. E é de lascar mesmo. Ninguém mais acredita em retrato feliz. Assim, se querem me mostrar algo bonito e convincente, me mostrem uma família de pai e mães reais, verdadeiros, que erram, acertam, tem fraquezas e, às vezes, se sentem prá baixo com toda essa violência psiquíca que é estar no mundo e criar filhos com um pouco de estabilidade emocional, satisfação existencial e retidão.

Se querem meu voto, sejam humanos, mostrem pessoas de verdade, que falem com o coração e digam para as pessoas: sou homem como vocês, percebo que nossa cidade tem grandes problemas, problemas que dificilmente serei capaz de resolver! Digam que as coisas são complicadas, pois tudo mundo sabe que o mundo dos sonhos e da ilusão faz mal. Para a vida em família, para a vida na cidade, para todos problemas humanos não existe solução mágica. Não venham me dizer que o universo da rua do lado é brilhante, que nada dá errado e que posso, com o queixo elevado, resolver tudo pois sou perfeito e poderoso. Ser um bom político significa, em primeiro lugar, admitir-se como homem.

domingo, 17 de agosto de 2008

Transcrevo, abaixo, parte da entrevista do Maestro Vicente Gimenes. Eu bem que gostaria que as coisas que ele diz sobre educação pudessem virar realidade nessas sonoras plagas. Mas o quê? Nossa brilhante e catedrática governadora encabeça um movimento contrário ao piso de novecentos e cinquenta reais para os professores, a formação de ensinadores (física, química, biologia, filosofia, letras, geografia, história) nunca foi tão desprezada e a idéia de uma razão objetiva medianamente focada no interesse público aparece como uma saudável quimera do passado. Só isso já é suficiente para pôr em risco os fins da república.......felizmente a imprensa descobriu que todos nossos problemas são responsabilidade das ações da polícia federal.


O objetivo que o ser humano persegue é alcançar certo equilíbrio, no qual nem o interior nem o exterior predominem, mas ambos sejam igualmente complementares um ao outro. As pessoas têm se tornado tão voltadas para fora que não conseguem, nem mesmo por um simples momento, sentar em silêncio. O medo é encontrar o vazio e uma vez que ele seja encontrado, a vida perde todo o interesse, todo o sabor, todo o sentido e significado. Muitos fogem de si mesmo. E chamam de divertimento a essa fuga.
Culturalmente nosso povo não põe a educação como um objetivo central da vida. A Finlândia criou, com medidas simples e focadas no professor, o mais invejado sistema educacional Quem entra numa escola na Finlândia se espanta com a simplicidade das instalações. O segredo da boa educação finlandesa realmente não está na parafernália tecnológica, mas numa aposta nas duas bases de qualquer sistema educacional. A primeira é o currículo amplo, que inclui o ensino de música, arte e pelo menos duas línguas estrangeiras. A segunda é a formação de professores. O título de mestrado é exigido até para os educadores do ensino básico.

Maestro Vicente Gimenes

quinta-feira, 14 de agosto de 2008


Reproduzo parte de uma pequena história interessante de dois monges. Está no blog do Antônio Cicero.

Provavelmente você conhece a dos dois monges, mas vou contar mesmo assim. Um dia eles estavam caminhando, quando chegaram a um riacho onde uma jovem estava à espera, com a esperança de que alguém a ajudasse a atravessar. Sem hesitar, um dos monges a levantou e carregou para o outro lado, pondo-a no chão em segurança....
De: CAGE, John. A year from monday. New lectures and writings. Wesleyan University Press, 1969, p.133.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008


No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela - silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

Paulo Leminski

terça-feira, 5 de agosto de 2008


Não sou bem um indío "galdério", mas gosto das coisas do campo. Tenho um gosto particular pela arte melancólica do sul, especialmente a milonga. Mas faz tempo que não ouço música cozida no fundo da alma. Essas dias me deu uma saudade daquela voz melódica numa música que fala dos rios do Rio Grande...rio Quaraí, Jacuí, rio Candiota, Camaquã, velho rio Santa Maria e por aí vai. Se algum leitor conhecer a autoria e coisa e tal, avise o pobre diabo aqui. A foto é do Ibicuí e saiu do site da Federal de Santa Maria.

Tá difícil de se firmá no basto. Acabaram as férias e o trabalho ultrapassa os espaços da vida. Ainda bem que o Grêmio anda ganhando uns jogos. Assim, quando acaba a paciência é só abrir a boca na frente da TV e contemplar a passagem inútil do tempo.
Amanhã ou depois eu vou fazer a lista de bons filmes que prometi pro Janrie.
A foto acima é de Eduardo Amorim. http://flickr.com/photos/75133058@N00/1491386568/